segunda-feira, 14 de setembro de 2009

O crime do silêncio

Olá a todos:
Aí está o meu texto. Boa semana a todos, e até o próximo encontro.
Ana Lúcia.

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O crime do silêncio

“Para mim, um quadro deve ser algo amável, alegre e belo, sim, belo. Já existem muitas coisas desagradáveis na vida. Para que inventarmos mais?” (Pierre-Auguste Renoir)

Decididamente, ter um minuto de silêncio e privacidade naquela casa era um crime, crime contra a família. Sempre morei debaixo do mesmo teto com muitos parentes meus, que nos meus momentos de raiva imaginava como bichos fugidos de um zoológico.

Eu tinha pai, mãe e dois irmãos menores. Até aí, tudo bem. Mas também moravam conosco os quatro avós, um tio de cada lado com seu cônjuge e filhos, o primo mais velho que engravidou descuidadamente uma moça e agora estava ali com ela e a criança e uma tia-avó da minha mãe, senhora de mais de oitenta anos, meio caduca e que não podia mais viver sozinha. O motivo dessa aglomeração era basicamente um: todo mundo ali achava lindo família enorme. Depois vinham as outras razões: ninguém podia ser feliz morando sozinho, era uma tradição... Sobretudo, a “bela” união daquelas pessoas garantiria um poderoso escudo contra os males da nossa sociedade moderna. Claro que, quando adolescentes, os filhos se rebelaram contra essa regra e foram tentar a vida longe dos parentes. Mas fracassaram e acabaram voltando, debaixo do “eu não disse?” dos pais. Mesmo assim, acho que o único ali que realmente tinha uma desculpa para vir morar com a gente era o tio Henrique, vítima de uma enchente do rio Amazonas, que levou tudo o que ele tinha. No entanto, ele criou outro negócio logo e continuou morando ali muito tempo depois. Os outros eram todos um bando de oportunistas, loucos para viver naquela casa bonita e espaçosa, localizada num bom bairro. Quando meus pais a compraram, como foi em parceria, combinaram que por causa disso ambos tinham o mesmo direito de abrigar os próprios parentes. Meus avós já estavam com eles, e pouco depois eu nasci. Muitos foram chegando aos poucos, durante os meus primeiros dez anos de vida.

Quartos havia muitos, cada casal tinha o seu. As crianças tinham dois quartos, um para os meninos e outro para as meninas. E eu nunca gostei disso, porque nunca pude dispor de um cantinho para ter privacidade, um mínimo que fosse. Pelo menos até os dez anos.

Mas isso não fazia grande diferença, pois quem disse que eu tinha esse direito? Se estava lendo um livro, ou só pensando em qualquer coisa, já vinha alguém me perguntar por que não estava brincando com meus irmãos e primos, ajudando a minha mãe nos afazeres domésticos ou pelo menos estudando. Como se não estivesse fazendo nada! E pouco importava que respondesse que gostava de passar o tempo assim. De pronto me expulsavam “delicadamente” do recinto, porque os adultos queriam ver televisão ou ter conversas que as crianças não devem ouvir. De qualquer forma, jamais conseguia me concentrar de novo depois que isso acontecia. Sempre havia gente andando pela casa, gritando, o volume da televisão ou do rádio sempre alto, o choro de algum bebê (porque sempre houve pelo menos um bebê ou criança pequena naquela moradia)... Sorte que nunca precisei estudar muito, pois aprendia só ouvindo a professora.

O fato é que nunca suportei conviver com muito barulho, por isso me sentia constantemente atropelada nos meus desejos, mesmo não sabendo definir esse sentimento durante muito tempo. Hoje acredito que, de algum jeito, devo ter nascido com uma tendência a falar pouco e me recolher mais, o que, graças às circunstâncias, foi-se acentuando até beirar o silêncio total. Não eram nem um pouco raras as seqüências de dias em que eu só dizia algumas palavras em casa, a maior parte monossílabos constantemente irritados. Se expusesse meus sentimentos e idéias, sabia que eles acabariam devastados pelo pensamento vigente. E seria considerada ainda mais estranha, pois só com o silêncio já tinha conquistado a fama de “esquisitona”, de “ovelha negra” da família. Via isso nos olhos deles, e eis outra coisa que odiava. Além deste comentário, que ouvi não sei quantas vezes:

-Essa menina é muito estranha, a gente tinha que levar no médico...

Por que nunca, uma vez que fosse, algo assim:

-Carolina é uma menina que precisa de silêncio.

Apenas fora dali é que consegui alguma esperança de compreensão e incentivo. Nas aulas de Artes, descobri meu talento para o desenho e a pintura. A professora acabou se tornando uma grande amiga, era para ela que eu levava os esboços dos meus futuros quadros. Mesmo assim, demorou muito para tomar coragem e comprar os meus primeiros materiais de pintura, pois não via um espaço que pudesse transformar no meu ateliê. E não queria que ninguém dentro de casa soubesse que ia pintar, não queria me expor ao ridículo.

Até que meus pais fizeram uma boa faxina numa salinha da garagem usada para guardar ferramentas, latas de tinta e mais tranqueiras. Claro que muita coisa continuou lá, diminuindo o espaço, mas fiquei tão contente que comprei o material, e mãos à obra.

Comecei transformando os meus melhores esboços em quadros. Depois passei por um período sem pintar porque nenhuma idéia que me vinha era boa, nenhuma me entusiasmava a gastar tela. Na verdade, foi só quando ouvi falar da Frida Kahlo na escola que descobri o que realmente queria: me retratar. É que até então pensava que isso seria um egocentrismo imperdoável da minha parte, mas quando vi os trabalhos dela, pensei: “Se ela pode, por que eu não posso também?” Por isso, creio que ela foi a minha primeira grande mestra.

Então, dos dez aos quinze anos, passei a fazer quase que somente isso. Representava-me sempre sozinha e feliz. O que mudava eram os objetos que segurava, as roupas que vestia e algum detalhe físico que experimentava mudar. Por exemplo, ora me pintava loira, ora ruiva, ora com diferentes tons de castanho nos cabelos, embora eles na verdade fossem castanho-claros. Meus olhos, que são da mesma cor, o nariz arrebitado, as bochechas grandes, o queixo redondo, os lábios grossos, tudo isso ia sendo modificado nas minhas pinturas. Mas não é que eu quisesse ter outra aparência, adorava a minha. Aquilo eram apenas experiências. De vez em quando, tentava investir em algum outro tema. No entanto, os meus quadros mais elogiados, e os que eu realmente tinha mais prazer de pintar foram os auto-retratos.

Até que aconteceu, foi quando eu tinha quinze anos. Quando um dos meus primos passou no vestibular para Medicina, claro, todo mundo estava alegre. Meu avô ia perguntando a cada neto o que queria ser quando crescesse, ou no que pretendia se formar. Quando chegou a minha vez, disparei, bastante empolgada:

-Artes Plásticas, mas ainda não sei se na Federal ou na FAP!

Nossa, parecia que eu tinha dado o pause numa fita de vídeo, porque ninguém se mexia, ninguém falava, tudo ficou suspenso no ar. Mesmo os mais novos obedeceram instintivamente a essa imobilização dos pais, foi algo inacreditável. Mas o pior veio alguns segundos depois. Meu pai chegou perto de mim e gritou, ríspido:

-O que foi que você disse, Carolina? Repete!

Isso foi o suficiente para que a mobilidade da cena voltasse, mas jamais outra vez aquele ar festivo de pouco antes. Quando chego nessa parte, simplesmente não consigo lembrar com detalhes das discussões histéricas que se seguiram. Algumas vezes, o enxame furioso de vozes se converte num zumbido sem palavras, alto e eficaz apenas para me sentir atordoada e irritada ao mesmo tempo. Em outros momentos, dá para recordar com clareza algumas palavras esparsas, o que me faz pensar que foi naquele preciso instante que descobri o motivo daquela reação: o irmão mais novo do meu pai “se meteu também a ser artista”, e o resultado foi que acabou um “inútil, drogado e alcoólatra”, morrendo de AIDS de uma maneira horrorosa. Foi assim mesmo, bem por cima, que fiquei sabendo da história desse tio. Embora fosse um tabu dentro daquela casa, todos os maiores de idade sabiam daquilo, para que se mantivessem afastados daquele caminho. E de pouco adiantou que eu contasse como tudo começou, mencionasse os quadros na garagem, e ainda alfinetasse dizendo que era só quando estava sozinha com eles é que me sentia bem-acompanhada, e não no meio daquela barulhenta família.

Foram vários dias de silêncios ou de brigas retumbantes, sem meio-termo e sem trégua, o que deixava a atmosfera da casa praticamente irrespirável.

Mas me orgulho em dizer que fui eu quem disse a última palavra. E adoro imaginar a seguinte cena: de manhãzinha, alguém sentou-se na frente do computador comunitário, provavelmente pensando que seria o primeiro a utilizá-lo. Enganou-se, pois só estava em modo de espera. Quando voltou ao plano de trabalho, outra surpresa, esta bem mais aterradora: havia um arquivo minimizado na barra inferior. Não sei se chamou todo mundo para saber de quem era (pois estava assinado apenas como Documento 1), ou se a curiosidade veio antes; ele deve ter aberto, sozinho ou cercado – pouco importa. Eles devem ter ficado abismados, como se estivessem vendo uma obscenidade sem nome.

E, no entanto, não passava de um álbum de fotografias que eu tinha feito no colégio, exibindo todas as minhas obras, até as que visivelmente não eram boas. Todas muito bem catalogadas, com título e data. Arrisco até a dizer qual foi a que mais os deve ter confundido: foi uma das últimas, em que me retratava loira de olhos verdes e vestida de odalisca, inspirada em “Jeannie é um gênio”. Sempre feliz, a figura do quadro segurava na mão uma esmeralda, na verdade empunhando-a como se fosse uma espada, mas com a graça de quem brande uma castanhola. (Nem eu sei, até hoje, como consegui esse efeito, simplesmente me escapou do pincel.) E encaro o observador com uma expressão zombeteira, mas que segundo Gustavo não deixava de ser graciosa...

Quando eles viram essa exposição digital, já era tarde demais – eu já tinha fugido na noite anterior com Gustavo, o namorado de que todos ali ignoravam a existência. E fiz questão de levar todos os meus quadros, com medo de que eles fossem queimados ou coisa parecida. (Desde o dia em que tiveram início as brigas, fui levando-os de pouco em pouco para a casa dele e da professora de Artes...)

Observação: Este é o depoimento da artista plástica Carolina Glória de Miranda, aos vinte e cinco anos, para sua psicóloga, Dra. Hilda de Andrade, após dois meses de terapia.

Fim.

Data: 12 de agosto de 2009.

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