sábado, 17 de outubro de 2009

A costureira e as crianças

“A agulha, em suas mãos, movia-se como se tivesse vida própria”.
Leticia Wierzchowski.

“Naqueles dias ditosos

Ia colher as pitangas,
Trepava a tirar as mangas,
Brincava à beira do mar;
Rezava às Ave-Marias,
Achava o céu sempre lindo,
Adormecia sorrindo
E despertava a cantar!"
Casimiro de Abreu.

A costureira é daquelas antigas, que costuravam usando esteira e agulha, sentadas numa cadeira de balanço, sofá ou poltrona. Esta senta numa poltroninha. É uma mulher jovem, não deve ter trinta anos, mas já tem ares de respeitável matrona, devido aos dois filhos que possui e que cria sem apoio masculino. Destaca-se a pele curtida de Sol em meio ao pano branco que tece por encomenda. Por sorte, ela trabalha no que gosta, mas fica o dia inteiro assim. Os dedos ficam embrulhados nos dedais quase o tempo todo, de modo que ela quase não os sente. Sem falar no silêncio que engolfa a casa, pequena e sombria. Mesmo assim, esse trabalho tem o dinamismo encantador proporcionado pelos movimentos da agulha, rápidos e cortantes. Vendo essa mulher trabalhar uma vez, fiquei imaginando que foram seus gestos que inspiraram a sinfonia número 40 em Sol Menor a Mozart.
Quando tomava da esteira e começava seu trabalho, curiosamente começava espetando a agulha por baixo, ou seja, na face oposta à voltada para ela. No início estava calma, espetando e passando o fio quase invisível por onde se era necessário. Até que de repente se assanhava e ia abandonando a placidez para fazer com mais paixão e até certa violência. Era quando erguia a agulha até o limite, arriscando perder o fio pelo buraquinho. Ao puxar tudo, não mais espetava no tecido, e sim cravava nele o metalzinho, como se o estivesse ferindo de morte. Mesmo quando o vôo vinha de baixo, era com a mesma intenção assassina. Os olhos da criatura se arregalavam de prazer. Mas logo acabava o entusiasmo, pelas repetidas perdas do fio e pelo próprio cansaço no braço.
Disse que os movimentos da agulha inspiraram Mozart, porém disse errado. Não foram só eles, não, as brincadeiras dos filhos da costureira também devem tê-lo inspirado de algum modo.
Brincando do lado de fora, os dois meninos e mais quatro amigos preferiam correr, se agitar e gritar muito, a ponto de serem considerados “endemoninhados” pelos vizinhos que eram mal-humorados. A costureira não costumava se importar, seu dever era apenas alimentar e vestir os filhos.
Quando lá estive, observei que eles brincavam do que hoje chamaríamos de “pega-pega” ou “pique”, porém de forma um pouco diferente. Quem pegava era o menorzinho e mais medroso, um garotinho de pele muito branca, loirinho e de olhos azuis. Os outros se escondiam atrás de árvores, pedras e casas, e quando esse menininho passava inadvertidamente logo dava de cara com um deles e morria de susto. Virava-se e dava com outro. Tentava correr, e vinha um terceiro barrar-lhe o caminho. E assim ia a brincadeira.
Ocorreu que um dos filhos da costureira teve a idéia de meter-se pela janela dentro de casa. Pouco depois, a vítima passou, e o grito para assustar que o filho da costureira deu foi tão forte que o loirinho finalmente criou coragem e fugiu para casa, escandaloso. Mas não foi só. A costureira, que ainda estava no momento de êxtase, jogou longe a esteira com a agulha, e se a poltrona fosse mais alta com certeza teria se empoleirado nela. Substituiu com um rápido grito, pondo a mão no coração, que batia descompensado. Eu pensei que tinha acontecido alguma coisa com algum dos meninos, e também fiquei assustadíssima.
O garoto veio correndo (ou rolando?) para sair pela porta da frente da casa, sem ter consciência do susto pregado na mãe e na visita. Ao ver aquilo, nós duas imediatamente compreendemos tudo. Ela chamou-o pelo nome, gritou com ele e bateu com a mão mesmo, até esta ficar vermelha. Trancou-o no quarto e em seguida foi à janela chamar o outro e aplicou-lhe os mesmos castigos.
Não posso negar que ficou um clima extremamente chato depois disso, e acabei indo embora mais cedo do que pretendia, com pena daquelas duas pestes. Antes de ir, porém, ainda tive oportunidade de vê-la retomar o trabalho e cravar a agulha em lugar de espetá-la no pano, mas desta vez com uma raiva ainda não de todo apaziguada, como se estivesse descontando em alguém. Deve ter encerrado mais cedo naquele dia, disso tenho certeza.
Ninguém me tira da cabeça que essa mulher tem pelo menos um pouco de inveja da alegria fresca dos filhos, e que os momentos de volúpia com a agulha eram a única alegria fresca que a vida dura lhe permitia desfrutar.
Fim.
Data: 15/10/09.

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