segunda-feira, 29 de março de 2010

Ouvir Estrelas - Olavo Bilac


“Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!” E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muitas vezes desperto
E abro as janelas, pálido de espanto...
E conversamos toda a noite, enquanto
A Via-Láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.
Direis agora: “Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão contigo?”
E eu vos direi: “Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas”

(Poesias, Via-Láctea, 1888).

quarta-feira, 3 de março de 2010


Mundo de Ivy



Em dias de inverno, a água quente do banho deixava o ambiente enfumaçado que mal se podia ver o desenho do azulejo. Dias frios guardam um perigo silencioso e mortal: repentinamente a chama piloto do aquecedor apagou deixando com que o gás lentamente tomasse conta do cômodo sem que Ivy percebesse. Depois de algum tempo, abriu a porta e sentiu o choque da temperatura do seu corpo com o ar gelado antes de cair no chão, desfalecida. A tia foi quem a encontrou e tentou reanimá-la, mas neste momento já não ouvia os sons deste mundo.

De repente um movimento. Viu luzes no teto como se estivesse sendo transportada numa maca pelos corredores de um hospital. Ouviu vozes que apressavam o socorro, sem nome, sem rosto. Num segundo, não estava mais lá. Não sentia atrito dos pés com nenhuma superfície, mas também não caía. Quem sabe flutuasse. Talvez estivesse numa sala vazia ou num buraco sem fim. Não conseguia saber, pois tudo era escuridão. Então alguém surgiu do nada e pôde ver uma face conhecida estranhamente iluminada. Era seu tio, morto há dois anos devido a um aneurisma. Ele se aproximou com um olhar carinhoso. Estava ali por um motivo que ela não queria aceitar. Era uma chance de se despedir, de realmente dizer adeus, mas sua mente recusava a realidade que viveu. Era como se o fato dele estar diante de seus olhos, tão perto de suas mãos, pudesse levá-lo de volta ao convívio familiar e a sua morte fosse apagada do tempo. Mas o passado não podia ser alterado, não era o seu tio quem estava no mundo dos vivos e sim Ivy quem vagava pelo desconhecido. Quando tentou segurá-lo pedindo para que não partisse, não viu seu olhar mudar em momento algum, seu semblante manteve-se tranquilo sumindo lentamente até desaparecer por completo.

Com uma sensação de tristeza meio sem sentido, tirou as mãos do rosto ainda molhado pelas lágrimas e percebeu que encontrava-se numa floresta. As folhas coloridas das árvores foram as primeiras a chamar a atenção. Balançavam com a brisa que fazia como se lá do alto saudassem a sua chegada. À frente, um caminho de paralelepípedos que continuava mata adentro, então viu que ao lado tinha uma casa, sendo curioso não tê-la notado antes.

Uma senhora com um ar misterioso a recebeu com um sorriso como se estivesse à sua espera. Embora se apresentasse muito amável, Ivy não conseguia deixar de sentir certo receio com relação à velha e toda aquela situação. A mulher mostrou os cômodos da casa, começando pela sala onde havia um homem e uma moça, ambos indiferentes à presença da jovem e depois uma espécie de copa com uma mesa repleta de pães caseiros. Uma luz natural clareava todo o ambiente que era muito aconchegante como casa de vó, deixando a desconfiança que sentia cada vez mais sem propósito.

- Você pode ter o que quiser. - disse a velha enquanto caminhavam.

Ivy soube que nem todas as pessoas enxergavam a casa, surgindo somente aos olhos daqueles que, por alguma razão, eram permitidos. Isto lhe pareceu tão incrível e ao mesmo tempo tão assustador que ela não mais conteve o medo. E por não acreditar que não estava em perigo, pois percebia tudo ao redor como algo à parte de si mesma, foi levada exatamente para o ponto onde estava na floresta quando viu a casa e que agora havia sumido.

Logo em frente avistou uma carruagem negra na qual entrou, pois assim intuiu que era o melhor a fazer. Havia também camundongos brancos que conduziram o carro por horas através da floresta. A viagem durou tanto que, ao entardecer, Ivy cochilou.

No momento em que acordou, estava numa calçada de uma cidade desconhecida. Pelas ruas transitavam apenas militares. A garota andou alguns metros até uma casa com a porta aberta. Ao entrar, poucos móveis dispostos sem ordem numa sala. Seguiu por um corredor vendo o interior dos cômodos em que passava, mas todos estavam vazios. Nos fundos havia outra porta. No instante em que se dirigia à saída, um homem de meia idade apareceu. Ele tinha uma cara séria e rapidamente segurou a mão dela erguendo-a na altura dos olhos e perguntou:

- Onde conseguiu isto?

Ivy olhou assustada, pois um anel havia surgido em seu dedo como mágica. Sem conseguir dizer uma palavra, deixou que o homem pegasse a joia e a examinasse contra a luz. Ao acompanhar o anel com os olhos, Ivy avistou algumas casas no alto de um morro e em seguida, uma mulher com trajes brilhantes e movimentos suaves parecendo dançar. Tal visão despertou um encantamento interrompido pelo som de uma voz cordial:

- É verdadeira! - disse o homem com uma expressão bem mais receptiva, como se a posse daquele objeto valioso tornasse seu dono especial. Ele acompanhou Ivy até a figura que lhe provocou tamanho fascínio. Quando se aproximou, reparou que a mulher tinha um rosto com traços delicados realçados pela maquiagem, cabelos castanhos e longos e vestia uma roupa cheia de enfeites como as de espetáculo, mas sua cintura era tão fina que causou-lhe um desconforto sugerindo a ideia de uma atração de circo de horrores. Embora a nova visão tenha provocado uma sensação diferente da primeira, tinha algo de familiar para Ivy, algo que lembrava ela mesma, mas era um reconhecimento tão íntimo que não saberia separar do resto do seu ser para identificar.

Com um sorriso fraternal, a mulher pendurou no pescoço da jovem uma corrente de prata com um pingente delicado que ela prontamente segurou entre os dedos para admirar. Ficou surpresa ao reconhecer as formas gravadas na joia. Era o mesmo desenho do azulejo do banheiro da sua residência. A lembrança ocorreu como um raio em sua mente fazendo com que imediatamente abrisse os olhos diante da sua família, na sala da casa onde morava.

Ivy foi levada ao hospital, pois tinha perdido os sentidos por alguns instantes. O médico falou que ela poderia ter morrido se continuasse inalando o gás por mais alguns poucos minutos.

Dias depois, não se lembrava do que tinha acontecido enquanto esteve inconsciente. Folheava um livro velho da estante na casa da avó quando um papel caiu no chão. As palavras nele escritas soaram como amoníaco nas narinas de quem teve uma síncope:

A carruagem já não é mais necessária para atravessar a floresta. Os camundongos estão livres para voltarem ao lugar do qual pertencem.

Esse dia marcou o despertar de Ivy para algo novo. Ela passou a viver nos dois mundos, seja à noite, em sonhos, seja durante o dia, no que muitos chamariam de delírio.

segunda-feira, 1 de março de 2010

Milla

Autor: Fábio Antonio Filipini

Nestor até que é um cara legal. Mora num condomínio onde tem muitas crianças – a maioria de deixar o “coisa ruim” de cabelo em pé – coisas da modernidade. Apesar dos contratempos da vida anda muito alegre. Diria apaixonado para ser mais preciso.
Conta ele que a belezinha sempre o recebe com carinho. Alegria que dá gosto. Não sossega se não receber atenção, carinho. Espera-o à porta, parece adivinhar a hora de sua chegada. Sentimento de quem é apaixonada, dependente.
Agora está criatura tem um sério problema, não gosta de crianças. Até quando resolve passear já fica logo agitada na presença delas.  O simples fato de vê-las, já a põem nervosa. Dizem os entendidos que é porque não teve seus filhos. Coisa estranha. Vá saber. Trauma? Talvez.
Sempre ao lado de Nestor, foi à única que agüento o cara durante seu mestrado, e haja mal humor – conheço muito bem o fulano, quando irritado é ruim de suportar. Mas ela, não se dá por vencida, parece não temer a vida. Com ele é segura. Agora, Nestor por vezes tem vergonha de sair com ela. Tanto carinho dela, e o cara me vêm com uma destas. Na verdadeele é duro na queda, não vê seus sentimentos.
Certa vez cheguei a conhecê-la. Para mim nada fora do normal, simpática. Nada vi de diferente, ou especial. Porém o Nestor, santo Deus! Já tá quase uivando por ela. Só ele não vê isto. Olha não me surpreenderia de ver o cara abanando até o rabinho feita aquela schnauzer. É meu amigo leitor, a belezinha na vida de Nestor é Milla. Uma cadelinha – no bom sentido – e tá quase deixando o cara de quatro.
Como continuação das atividades iniciadas na Oficina de Literatura UT PICTURA POIESIS (Textos Plurais) da Fundação Cultural de Curitiba realizada em 2008 e 2009, ministrada pela escritora Monica Berger, nosso blog torna-se agora a Confraria dos Escritores da Ordem (CEO).
Inspiração e muitas boas ideias à todos os colaboradores!
Abraços