quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Entrevista com Ferreira Gullar sobre poesia no site da Bravo!
Confiram aqui!

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

O céu é o lugar dos poetas

"Que o nome querido já nos soa como os outros".
Manuel Bandeira.

Não sei por que, mas hoje quis contemplar o céu estrelado. Um céu como o de todas as noites, com Lua e coberto de estrelas. Mas ele me atrai de maneira inexplicável, como um velho amigo querendo me contar um segredo, porém aumentando o suspense para me deixar curiosa.
De repente vejo sem esforço: há uma bela Lua na noite. O mais incrível é que sua prata está um tanto embaçada por uma nuvem vaporosa, que existe apenas porque atrapalha um pouco o esplendor da luz. Que visão magnífica! Parece que a Lua, transformada em pérola, está afogada num mar em pleno céu, esperando que algum aventureiro vá resgatá-la para permitir a ela exibir todo o seu brilho para a platéia de seres humanos para quem agora é noite.
Engraçado é que de alguma forma sinto que poderia fazer esse resgate, mesmo não podendo fisicamente voar para o céu e agarrar a Lua e lutar contra aquela nuvem. As palavras e imagens me vêm à cabeça num turbilhão. Aquela Lua presa naquela gaze feita camisa-de-força podia ser tudo e podia ser nada, podia também ser apenas uma Lua atrás de uma nuvem.
Estou me sentindo uma argonauta, e então vejo: foi aquela mesma Lua, aquela mesma nuvem, que um dia inspiraram Olavo Bilac, Cruz e Sousa e tantos outros. Todos eles tinham seguido esse caminho um dia, como um destino. Posso vê-los ali, naquela Lua e naquela nuvem, tendo as estrelas como cordiais irmãs, de brilho e de proximidade.
Entre eles vejo o meu amigo poeta, e isso me dá vontade de rir. Esse meu estado fora do normal só pode ser obra dele, de tanto ele me injetar poesia. O que me admira é ele continuar fazendo isso depois de morto. (Decerto que não pelas palavras dele, pois não voltei a lê-lo depois que morreu...) Vai ver porque ele era muito bom poeta, e melhor ainda ser humano. Por tudo isso, não quero deletá-lo nem da minha mente, nem do meu coração. Que o nome querido dele não me soe como os outros, como diria Manuel Bandeira, outro que vejo na Lua e na nuvem. Se isso acontecer algum dia, acho que terei perdido aquela Lua e aquela nuvem. Terei perdido algo de grande valor.

- Bem, gente - finalizou Isabela, após terminar de ler esse seu depoimento para o público da oficina literária da qual estava participando havia apenas dois dias. - ,tentei aí descrever e narrar esse momento, mas ao mesmo tempo que fosse de uma forma instigante, que você terminasse de ler e se sentisse enlevado, surpreendido, provocado ou até perguntasse "O que é isso?" e fosse dormir com essa interrogação na cabeça. Queria, por exemplo, saber manejar palavras complexas em frases lindíssimas, como Cruz e Sousa e Carlos Drummond de Andrade, sabe, extraindo coisas das palavras mais simples que ninguém nunca viu antes. Não tenho a menor idéia se consegui algum desses meus objetivos, ou se estou aqui fazendo papel de palhaça, me julgando escritora ou poetisa, e no fim vocês já viram isso da mesma forma, em milhares de poetas diferentes, pois o que não falta nesse mundo é poeta e escritor, ou gente que se intitula assim. Nem o tema é original...
Fim.
Data: 7 de novembro de 2009.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Quinta estação






tão só sozinho
isolado da alma
afoga razão




autor: Fábio Antonio Filipini






Referência sobre a inspiração:

HAICAI

Pequeno poema com uma métrica de três versos, de 5-7-5 sílabas, que surgiu no Japão no século 16.
No século 20 disseminou-se por todo o mundo. Sua maior expressão é Matsuo Bashô (1644-1694), poeta japonês cirador do mais famoso de todos os haicais: “velho lago / mergulha a rã / fragor d’água”.
Em português aceita-se que a contagem das sílabas de 17 sílabas não seja seguida à risca, não devendo, no entanto, ultrapassar um máximo de 21 sílabas.
Também não é necessário haver rima dos versos. O haicai deve ter um “kigô”, ou seja, uma referência a uma estação do ano, elemento básico de sua ligação com a natureza. O haicai passa-se no presente, tem um olhar de cinema que mostra uma imagem e nos permite ver seu movimento, sem discurso opinativo do autor.

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Saída

Texto inspirado na fotografia: Chris Rain, This is not exit
Saudade
da saudade
momentos de amor...
de ter a quem amar.

Estranho
é ser
tão só sozinho...
pode sufocar.

Gente que é gente
precisa de amor...
não dor,
saída


Postado por: Fábio Antonio Filipini

Paraíso

Fotografia: Alfredo Yazbek, Barco coletivo

O paraíso, sabe-se lá onde fica!

Mas de uma coisa tenho certeza, construímos o paraíso ao longo da vida.

O paraíso se monta com todos os momentos bons.

Daqueles em que falta ar de tanta emoção...

Daqueles onde os olhos se enchem de água por felicidade...

Daqueles em que ficamos frouxos de tanto rir...

Agora?

Em meu paraíso mais um ano se passa e você habita nele.

Hoje?

Espero contribuir com o seu paraíso, e quando for partir o leve na bagagem.

Ao partir não se vai para o vazio, mudamos para o paraíso.

No paraíso não se fica só.

Postado por: Fábio Antonio Filipini

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009


Momentos insolúveis
Condenam a alma ao labirinto habitual
Paredes intransponíveis
Guardam um tempo secreto
Real num instante
Em outro, apenas vulto no espelho.

(imagem: www.zonezero.com)

sábado, 12 de dezembro de 2009

Piano e coração (Cruz e Sousa)

O piano, o piano e o coração.
Ó melodias do coração, ó harmonias do piano.
Chopin, Gounod, Métra, Strauss, Beethoven, Gottschalk, constelação gloriosa de boêmios de ouro!...
Quando o piano musicaliza, caracteriza, espiritualiza as longas escalas cromáticas, os adoráveis "allegros", os interessantes "pizzicatos", quem fala primeiro que os cérebros artísticos, é o coração.
Ele canta mais que todos os órgãos humanos.
O coração é o pulso do cérebro artístico.
Pela temperatura e o grau de sentimento de um, o músico estabelece a proporção do outro.
Um dirige, outro executa.
Um tem a fórmula, outro funciona.
Um é o oxigênio, outro o carvão.
Um faz o relâmpago, outro produz o raio.
Coração e cérebro aliam-se, homogeneizam-se.
Assim o piano, eternamente assim.
O coração é a luta, as grandes tempestades desoladoras, varadas de cóleras surdas de vendavais gargalhantes e intérminos, de frios que estortegam, enregelando as noites soturnas das trevas compridas e absolutas; o coração é a maciosidade dos linhos, a candidez consoladora dos luares estrelados, a fluidez elétrica dos perfumes excitantes, as expansivíssimas alegrias, castamente sonoras e sonoramente castas.
O coração ruge e vibra.
Assim o piano.
Cada palpitação do piano, é uma fibra do coração, que bate.
Tem os mesmos triunfos, os mesmos humorismos fúnebres, as mesmas impotências e coruscações, o piano.
Chora e canta, ri e soluça.
Quanta vez o artista não canta, não ri e chora e soluça com o piano.
Dizei à sensibilidade que emudeça.
À sombra que se subdivida, partícula por partícula, pela própria sombra.
O piano, como o coração, representa um ser complexo, com os elementos necessários, com os nervos, com os músculos de vitalidade dispostos, preparados, desenvolvidos, de forma a infiltrar nos demais seres, a seiva psíquica, a sangüinidade simpática da arte.
___________________________________________________________________
Esta foi em homenagem à Rita, pela crônica "Música".
Data: 12/12/09.

Abismo

Não posso mover meus passos por este atroz labirinto.
Não posso mover meus passos por este atroz.
Não posso mover meus passos por este.
Não posso mover meus passos por.
Não posso mover meus passos.
Não posso mover meus.
Não posso mover.
Não posso.
Não.
Não posso.
Não posso mover.
Não posso mover meus.
Não posso mover meus passos.
Não posso mover meus passos por.
Não posso mover meus passos por este.
Não posso mover meus passos por este atroz.
Não posso mover meus passos por este atroz labirinto.

"Não posso mover meus passos por este atroz labirinto": frase de Cecília Meireles, em "O Romanceiro da Inconfidência".
Data: 18 de novembro de 2009.

Conforme eu tinha dito no encontro, me inspirei numa letra do Caetano Veloso e Gilberto Gil em que eles faziam exatamente esse jogo com as palavras. Eis a letra:

Batmacumba
batmacumbaieiê batmacumbaobá
batmacumbaieiê batmacumbao
batmacumbaieiê batmacumba
batmacumbaieiê batmacum
batmacumbaieiê batman
batmacumbaieiê bat
batmacumbaieiê ba
batmacumbaieiê
batmacumbaie
batmacumba
batmacum
batman
bat
ba
bat
batman
batmacum
batmacumba
batmacumbaie
batmacumbaieiê
batmacumbaieiê ba
batmacumbaieiê bat
batmacumbaieiê batman
batmacumbaieiê batmacum
batmacumbaieiê batmacumba
batmacumbaieiê batmacumbao
batmacumbaieiê batmacumbaobá

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Labirinto

Autor: Fábio Antonio Filipini (Phylypyny)
Inspirado na frase de Cecília Meireles:
"Não posso mover meus passos por este atroz labirinto."
Seus lábio estão divididos.
Não posso mover meus passos por este atroz labirinto.
Compromisso acabou, mas o amor persiste.
O vazio no coração o mantém na ponta do medo.
Não bastará uma única taça de vinho para diluir a tristeza que deixaste...
Teus olhos ainda encantam.
Sorriso hipnotiza.
Deixaste migalha de carinho.
Dei a textura do meu interior.
Hoje? Dor.
Então, o jeito é microoxigenar o sentimento que preso está neste caminho.
Tem dias que um gole de vinho dá vida à saudade da gente,
mas espero que com o tempo você seja somente borra no fundo de meu coração.

Nome querido

Autor: Fábio Antonio Filipini (Phylypyny)

Inspirado na frase de Manuel Bandeira:
"Que o nome querido já nos soa como os outros."

Hoje?
Está lá.
Pensará ter perdido
Teu sorriso escondido.

Aqui?
O tempo castiga-me.
Você?
Esquece-me.

Então, um dia
Não sei quando, espero
Que o nome querido
já nos soe como os outros.

sábado, 21 de novembro de 2009

As folhas obedecem ao vento
Assim como boas meninas obedecem aos pais
Para onde vão
Não importa
Lentamente desaparecem
Até que o nome querido soe como os outros
Até que a face desconhecida habite o espelho
E como a lembrança de um sonho bom
Têm seu fim no esquecimento.


"Que o nome querido já nos soa como os outros" (Manuel Bandeira)

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Olá,

Leiam aqui um artigo interessante do Itaú Cultural sobre Cortázar.

Abraço a todos.

domingo, 8 de novembro de 2009

Por Cristiane Dalla Bento

A IDOSA

Do apartamento no terceiro andar a senhora de cabelos brancos observa pela janela do quarto as pessoas passando na rua. Com um corpo decrépito, roupas cheirando naftalina e rosto enrugado, seus olhos fundos e fracos seguem os passos de quem se aventura a viver.

Sua quase imobilidade e seu olhar perdido podem durar horas que não serão notados. A respiração deixa o vidro um pouco embaçado, mas ela não se importa. Há muito tempo sua vida não tem mais qualquer sentido.

Faz frio, porém mesmo que estivesse quente ela não sairia de casa. O agravamento da velhice lhe limita os movimentos e caminhar é muito penoso. Há anos a envelhecida mulher não sai do pequeno apartamento e daquele quarto. A última vez foi no enterro de uma das quatro irmãs.

O corpo reconhece a fatalidade do envelhecimento, no entanto, não se entrega. Na monotonia da sua vida, o que lhe dilacera a alma é a solidão. Sem filhos, sem amigos, sem parentes. Aos 98 anos a anciã magra e de cabelos ralos não tem com quem conversar. Além disso, ninguém dá atenção a uma pessoa que houve pouco e demora muito para pronunciar qualquer frase. Sua limitação física dificulta qualquer contato com o mundo e com as pessoas.

Está sempre isolada e sozinha. Não consegue acompanhar a programação da televisão. Novelas, não entende, filmes menos ainda. Os noticiários são extremamente rápidos e sua mente cansada já não acompanha a realidade. Mal sabe escrever o nome, quanto mais ler. Só lhe resta ver os outros passando na rua pela triste e solitária janela.

Algumas vezes chegou a acenar para uma pessoa ou outra que a notavam na vidraça, mas todas viravam o rosto e seguiam seus caminhos. O isolamento aumenta quando chove, já que nesses dias há menos gente na rua.

A solidão lhe consome. Às vezes pensa que vai enlouquecer. Chega a ver pessoas que fizeram parte da sua vida transitando pela calçada, mas logo se dá conta que é imaginação.

Uma ocasião estava certa que uma mulher de vestido azul era uma antiga vizinha, chegou até a prender a respiração de surpresa e por alguns instantes imaginou como seria encontrar alguém conhecido. Contudo, a mulher se foi e a idosa voltou à rotina de apenas olhar os outros indo e vindo.

Da sua vida só lhe resta olhar pela janela e aceitar a monotonia da sua existência, de onde só a morte a resgatará da devastadora solidão.


*****************


(Donna con Ventaglio - Gustav Klimt)


MULHER

Movimento

Formas sedutoras

Geométrico Mozaico

Sensualidade e leveza

Olhar majestoso e sedutor

Tranquilidade imponente

A natureza se aperfeiçoa na mulher


**************


Majestosa K 626

O prodigioso gênio envelhece e se aprimora

Nasce sua última sinfonia

Canta nobreza da morte

Em majestosa harmonia

As cordas evocam

Sublime beleza

Unindo instrumentos e vozes

Em perfeita melodia

O talentoso autor

Ao fechar dos olhos

Enaltece o Criador

E se rende à Sua Glória


http://www.youtube.com/watch?v=FrEQ-N6CNKo&feature=player_embedded


quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Caos Interior


























Subjgado interior

ao amor não

correspondido, escondido.


Um borrado desejo sensual

que corta as arestas

tontas da alma.


A prepotência superficial

na abastada e mórbida

paixão incessante.


Então que seja

o fim, para não ter que....

terminar.



Postado por: Fábio Antonio Filipini, Inspiração na Obra Judith, de Gustav Klimt

Lacrimosa

Triste é a dor mortal
julgada na

beleza dos

olhos de censura.

Lascivo é o querer que
tortura o desejo.
Vida agora tolerável
em verdades aceitas.

Piedade, ó tempo, para que
lágrimas não afoguem o coração
coberto de dor em busca do
descanso eterno.

Amem.


Postado por: Fábio Antonio Filipini, inspiração Requiem em Ré Menor, KV 626 - Mozart.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Solidão


“Chega! Não agüento mais.
Você fica aí me olhando,
Sem dizer nada.
Depois de tudo o que já passamos.
Uma vida inteira!
Agora os anos se foram.
Nós precisamos conversar mais.
O tempo que nos resta não pode
simplesmente passar como um filme pela janela.
E então?
Você continua calado.
Se cala e me encara.
Olha nos meus olhos, e nem eles dizem nada.
Por que não responde?
Me sinto tão só.
Não tem mais o que dizer?
Você me enfurece com esse silêncio.
Tenho vontade de te sacudir e
Fazer você reagir.
Vamos, fala alguma coisa!”

Mas a imagem refletida no espelho,
Continuou calada...

domingo, 18 de outubro de 2009



A brisa noturna chega
Mais tarde, uma estrela sorri
As siluetas das árvores
Já não são mais as mesmas
No céu violeta
A espera pelo despertar é sonolenta.

***************


(A Esperança I - Gustav Klimt)


Fio dourado desce para cima
Mergulha num infinito anoitecer
Percorre trilhas perdidas
Direções desconhecidas
E num sopro misterioso
Continua o que não tem fim.



(temas: Mozart: concerto nº3 e Gustav Klimt: A Esperança I, respectivamente)

sábado, 17 de outubro de 2009

A costureira e as crianças

“A agulha, em suas mãos, movia-se como se tivesse vida própria”.
Leticia Wierzchowski.

“Naqueles dias ditosos

Ia colher as pitangas,
Trepava a tirar as mangas,
Brincava à beira do mar;
Rezava às Ave-Marias,
Achava o céu sempre lindo,
Adormecia sorrindo
E despertava a cantar!"
Casimiro de Abreu.

A costureira é daquelas antigas, que costuravam usando esteira e agulha, sentadas numa cadeira de balanço, sofá ou poltrona. Esta senta numa poltroninha. É uma mulher jovem, não deve ter trinta anos, mas já tem ares de respeitável matrona, devido aos dois filhos que possui e que cria sem apoio masculino. Destaca-se a pele curtida de Sol em meio ao pano branco que tece por encomenda. Por sorte, ela trabalha no que gosta, mas fica o dia inteiro assim. Os dedos ficam embrulhados nos dedais quase o tempo todo, de modo que ela quase não os sente. Sem falar no silêncio que engolfa a casa, pequena e sombria. Mesmo assim, esse trabalho tem o dinamismo encantador proporcionado pelos movimentos da agulha, rápidos e cortantes. Vendo essa mulher trabalhar uma vez, fiquei imaginando que foram seus gestos que inspiraram a sinfonia número 40 em Sol Menor a Mozart.
Quando tomava da esteira e começava seu trabalho, curiosamente começava espetando a agulha por baixo, ou seja, na face oposta à voltada para ela. No início estava calma, espetando e passando o fio quase invisível por onde se era necessário. Até que de repente se assanhava e ia abandonando a placidez para fazer com mais paixão e até certa violência. Era quando erguia a agulha até o limite, arriscando perder o fio pelo buraquinho. Ao puxar tudo, não mais espetava no tecido, e sim cravava nele o metalzinho, como se o estivesse ferindo de morte. Mesmo quando o vôo vinha de baixo, era com a mesma intenção assassina. Os olhos da criatura se arregalavam de prazer. Mas logo acabava o entusiasmo, pelas repetidas perdas do fio e pelo próprio cansaço no braço.
Disse que os movimentos da agulha inspiraram Mozart, porém disse errado. Não foram só eles, não, as brincadeiras dos filhos da costureira também devem tê-lo inspirado de algum modo.
Brincando do lado de fora, os dois meninos e mais quatro amigos preferiam correr, se agitar e gritar muito, a ponto de serem considerados “endemoninhados” pelos vizinhos que eram mal-humorados. A costureira não costumava se importar, seu dever era apenas alimentar e vestir os filhos.
Quando lá estive, observei que eles brincavam do que hoje chamaríamos de “pega-pega” ou “pique”, porém de forma um pouco diferente. Quem pegava era o menorzinho e mais medroso, um garotinho de pele muito branca, loirinho e de olhos azuis. Os outros se escondiam atrás de árvores, pedras e casas, e quando esse menininho passava inadvertidamente logo dava de cara com um deles e morria de susto. Virava-se e dava com outro. Tentava correr, e vinha um terceiro barrar-lhe o caminho. E assim ia a brincadeira.
Ocorreu que um dos filhos da costureira teve a idéia de meter-se pela janela dentro de casa. Pouco depois, a vítima passou, e o grito para assustar que o filho da costureira deu foi tão forte que o loirinho finalmente criou coragem e fugiu para casa, escandaloso. Mas não foi só. A costureira, que ainda estava no momento de êxtase, jogou longe a esteira com a agulha, e se a poltrona fosse mais alta com certeza teria se empoleirado nela. Substituiu com um rápido grito, pondo a mão no coração, que batia descompensado. Eu pensei que tinha acontecido alguma coisa com algum dos meninos, e também fiquei assustadíssima.
O garoto veio correndo (ou rolando?) para sair pela porta da frente da casa, sem ter consciência do susto pregado na mãe e na visita. Ao ver aquilo, nós duas imediatamente compreendemos tudo. Ela chamou-o pelo nome, gritou com ele e bateu com a mão mesmo, até esta ficar vermelha. Trancou-o no quarto e em seguida foi à janela chamar o outro e aplicou-lhe os mesmos castigos.
Não posso negar que ficou um clima extremamente chato depois disso, e acabei indo embora mais cedo do que pretendia, com pena daquelas duas pestes. Antes de ir, porém, ainda tive oportunidade de vê-la retomar o trabalho e cravar a agulha em lugar de espetá-la no pano, mas desta vez com uma raiva ainda não de todo apaziguada, como se estivesse descontando em alguém. Deve ter encerrado mais cedo naquele dia, disso tenho certeza.
Ninguém me tira da cabeça que essa mulher tem pelo menos um pouco de inveja da alegria fresca dos filhos, e que os momentos de volúpia com a agulha eram a única alegria fresca que a vida dura lhe permitia desfrutar.
Fim.
Data: 15/10/09.

A vida e a morte

A vida e a morte, de Gustav Klimt (1910-1915, óleo sobre tela).
A vida e a morte
"Os Nomes
Duas vezes se morre:

Primeiro na carne, depois no nome:
Esvaziando-se de seu casto conteúdo
-Tantos gestos, palavras, silêncios -
Até um dia sentimos
Com uma pancada de espanto (ou de remorso?)
Que o nome querido já nos soa como os outros”.
Manuel Bandeira.
“Quando somente uma é a verdade, não existe verdade; quando a ordem é sempre a mesma – eis a barbárie! Então a única lei é a inércia, e tudo perde a força. As coisas todas perdem sua vontade – pois força do todo é força nenhuma!”
Gustavo Diaz, em “Caim”.

A morte escura, em expectativa. Na verdade, um esqueleto envolto numa capa, segurando um cetro vermelho e sorrindo sarcasticamente. Não passa de uma figura ridícula. Mas amedronta. Talvez porque represente o nosso futuro.
Contingentes de vida coloridos estão numa situação esquerda, irremediavelmente ligados a ela, é só uma questão de tempo para que passem para o outro lado. E não voltem mais. E desapareçam do mundo dos vivos aos poucos. Será que é disso que temos medo? Vão na direção da morte, como se fossem um barco à deriva, mais um grupo de pessoas. Há crianças, adolescentes, adultos e velhos. Homens e mulheres. Parecendo não saber para onde a vida os leva. (Se ficassem pensando na morte, não viveriam. Ninguém se encantaria com um nascimento, ninguém se preocuparia com sobrevivência, nem com bondade, alma, progresso, desenvolvimento das ciências e das artes...)
Todos os dias duelamos com a morte, para tirar da vida essas e outras coisas. Mas um dia perdemos. Não se pode ganhar todas. Também precisamos descansar, como a anciã cansada do grupo, que deseja isso mais do que tudo. Se não morrêssemos, a própria vida nos seria inútil, pois não poderíamos extrair nada dela. Fruta só com casca, sem os gomos sumarentos.
Sendo assim, escolhemos como lidar com a morte. Muitos esquecem que um dia vão se encontrar com ela, então quando acontece se rebelam; outros vão serenamente. Alguns a procuram com desespero. Alguns lucram com ela, outros perdem. Alguns matam sem querer, outros matam porque querem, e nem sempre é o corpo que morre. Há os que morrem em vida, e há os que mesmo na morte vivem. Há os espíritos que voltam e os que não voltam. E existem os que pagam um dízimo para a eternidade, a fim de que continuem vivendo mesmo depois de mortos.
Como assim? Por exemplo, numa obra de Gustav Klimt.
Fim.
Data: 10/10/09.

domingo, 11 de outubro de 2009

Criança de fronte pura e luminosa,
E olhos sonhadores, espantados:
Embora escorram as horas ociosas
E meia vida nos torne separados,
Teu rosto - é certo - acolherá risonho
Esta oferta de amor: um conto-sonho.

Tua face ensolarada não mais vejo
Nem mais escuto o teu riso argentino
E minha imagem não terá, prevejo,
Lugar em teu futuro cristalino.
Basta-me só que não deixes - proponho -
De ouvir este meu conto-sonho.

Conto que outrora começou, num dia
Em que o sol esplendia no verão
E acompanhava, simples melodia
O ritmo dos remos: seu refrão.
Eco que na memória não esmorece
Embora o ciúme do tempo diga: "esquece"

Escuta, antes que voz de acento amargo
Venha trazer notícia dolorosa,
Convocando para o final letargo
Uma donzela melancólica.
Não somos mais que crianças, querida,
Agitadas na hora de dormir.

Lá fora, a neve gelada e ofuscante,
Das borrascas a fúria e o capricho.
Dentro, a lareira, o fulgor radiante,
Do júbilo da infância ninho e nicho.
Aqui te prendem essas mágicas vozes:
Não ouvirás esses ventos velozes.

E embora se ouça a sombra de um suspiro
A estremecer no meio dessa estória,
Pelos "dias felizes" consumidos
E do verão a esvaecida glória,
Turvar não quero, com hálito enfadonho,
Todo o prazer deste conto-sonho.

Lewis Carroll
(Aventuras de Alice)

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Nossas heranças, nossos desterros

Oi, gente:
Não sei se alguém tem o hábito de ver o jornal Rascunho (eu não tenho), mas vi este texto no site www.rascunho.com.br e achei importante, até para a gente discutir no próximo encontro, talvez. No site há outros textos com o mesmo tema, porque o jornal costuma pegar no pé de quem se pensa escritor mas não desenvolve a própria voz.
Até a próxima!
Ana Lúcia.

Colunistas : Claudia Lage


NOSSAS HERANÇAS, NOSSOS DESTERROS
A diferença entre o escritor tradicional e o rebelde; e os desafios do autor contemporâneo
"É tarde demais para desfolhar um livro e pendurar as suas páginas numa árvore de arame", me disse um amigo intelectual, "tornar o texto uma explosão de imagens livres e fragmentadas, desconectadas de um passado e de um futuro, como fizeram os surrealistas". A bela imagem logo povoou a minha mente. Folhas e palavras fincadas em finas estruturas, ao sabor do sol, ventos e tempestades. "Também é tarde demais para prender personagens e enredos em descrições e explicações excessivamente racionalizadas e estabelecidas", ele continuou, "como fazia a tradição realista". O meu amigo intelectual é assim, adora lançar idéias e questões no ar, para que eu, a sua amiga escritora, as pegue antes que a gravidade as derrube estateladas no chão. "Por que tarde demais?", fiz a pergunta que ele esperava, "o que pode ser tarde ou cedo demais na escrita, na literatura?", provoquei. O meu amigo intelectual fez uma pausa profunda antes de responder. "Porque hoje não há mais lugar para manifestos", ele disse, "já que nada mais há para destruir", e após outra pausa, completou, "apenas para performances, porque ainda há muito que fazer".
E explicou que ao dizer performance, não queria dizer encenação, mas experiência. Como diz o dicionário: realização, feito, acontecimento. Ao ouvir o meu amigo intelectual, lembrei de um livro do escritor argentino Julio Cortázar, chamado a Teoria do túnel. Neste ensaio de 1947, Cortázar considera dois tipos de escritores: o tradicional, que segue um perfil de literato para quem a questão estética é voltada para os parâmetros realista e a realização estrutural da obra; e o escritor rebelde, representado pelos surrealistas, que visavam a formulação estética através da sensibilidade pessoal do artista. Para Cortázar, a diferença entre o escritor tradicional e o rebelde era total: para o último, o artista não lida mais com a obra de arte como se essa tivesse que espelhar a realidade, seguindo convenções literárias específicas. A obra torna-se massa a ser moldada pelo espírito criador do artista, pela sua maneira particular de ver o mundo.
"O escritor rebelde de Cortázar tinha o que destruir", pensou meu amigo intelectual, "uma literatura engessada, pé-no-chão, fabricada mais pelo discurso do que pela linguagem, mais pela informação do que pelo jogo literário". Do mesmo modo que o escritor rebelde buscava a sua visão pessoal da literatura, o escritor tradicional se apoderava das noções já estruturadas de gênero, narrativa, enredo, espaço/tempo, foco narrativo, personagens, sem considerar a possibilidade de questioná-los, negá-los ou recriá-los.
Como eu, o meu amigo intelectual tem grande admiração por Cortázar. Para nós dois, é apaixonante, na leitura de Teoria do túnel, acompanhar as suas reflexões e angústias. O escritor argentino sempre foi generoso em expor as suas dúvidas, seus medos, anseios e questionamentos criativos. Nunca esteve preocupado em acertar ou errar, mas sim em estar de acordo com a sua visão literária. "Vamos colocar ao lado dos dois escritores de Cortázar um outro tipo", sugeri, "o escritor contemporâneo". "Ótimo", vi os olhos do meu amigo intelectual brilharem atrás dos óculos, "esse escritor que nada mais tem a manifestar, mas muito a fazer". Para o meu amigo intelectual, o desafio do escritor contemporâneo é outro, já que ele possui em sua memória histórica tanto a afirmação quanto a negação da tradição. Na estante de sua casa, romances do século 19 dividem espaço com livros da vanguarda européia, modernismo brasileiro e outros modernos. "O escritor do início do século 21, diante de tantas informações e referências, corre o risco de se perder em um labirinto de possibilidades expressivas", proferiu o meu amigo intelectual, "limitando-se a reproduzi-las, sejam tradicionais ou vanguardistas, acrescentando pouco da sua originalidade pessoal". "Então, de certa forma, voltamos ao escritor rebelde", eu disse, "porque permanece o desafio em trabalhar o texto a partir de uma visão própria de mundo". O meu amigo intelectual pensou um pouco antes de concordar. "É verdade. Mas sem a intenção de desconstruir parâmetros, como os vanguardistas". "A intenção agora é outra", acrescentei, "é encontrar a própria voz criativa dentro de um turbilhão de vozes. Muito já foi feito, desfeito, dito e redito, a única possibilidade realmente criativa é então aquele que surge de anseios e visões muito pessoais".
"Exatamente!", meu amigo intelectual começou a gesticular, exaltado, não sei se com o que eu havia dito ou com o que ele estava prestes a dizer. "É nesse sentido que digo que ainda há muito a ser feito. O que é esperançoso, e, de certa forma, renovador. O desejo maior do escritor rebelde nunca foi destruir a narrativa realista apenas por destruí-la, mas porque ela paralisou dentro de sua convenção o espírito criativo e pessoal do artista. Esse legado permanece, basta escutá-lo. A sua mensagem fundamental é a liberação do imaginário, a expressão de uma sensibilidade particular, e não a destruição. Hoje não é necessário mais distorcer um texto, virá-lo de cabeça para baixo, abandonar completamente personagens e enredos, negar para sempre as referências da tradição". Ouvindo meu amigo intelectual, pensei nos escritores tradicionais citados por Cortázar: Flaubert, Zola, Tolstoi, Dostoievski, Proust, entre outros. Todos grandes construtores de personagens e enredos, também reconhecidos e louvados pelo escritor argentino. "O reconhecimento da tradição é inevitável", considerei, "há também um grande legado aí". "Sim", meu amigo intelectual concordou, "e por que não olhar para os dois, conhecer os dois, escutá-los?". E continuou, empolgado, "A rebeldia veio para resgatar na literatura a experiência sensível, íntima, pessoal, de quem escreve com o que escreve. Há ou houve talvez um grande engano, no escritor contemporâneo, em querer se aproximar do escritor rebelde destruindo simples e completamente as estruturas tradicionais. É como destruir uma casa sem libertar a alma aprisionada em suas paredes".
Olhei-o, atônita. O meu amigo intelectual havia esquecido algo muito importante. Ele não estava conversando com seus outros amigos intelectuais, mas com a sua amiga escritora. Não se diz essas coisas, assim, para a gente. Em seguida, olhei lentamente para os meus dedos. Era inevitável: eu tinha ruínas e almas aprisionadas nas mãos. O meu amigo intelectual percebeu enfim a minha angústia, mas, mesmo percebendo, não se deixou abater. Foi impassível: "É como eu disse: há muito a ser feito".

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Só para registrar os temas do próximo encontro:

1. uma obra de Gustave Klimt
2. uma música de Mozart

boas ideias a todos!
Ela se esconde no eterno silêncio da espera.


Veja o vídeo aqui.

O crime do silêncio

Olá a todos:
Aí está o meu texto. Boa semana a todos, e até o próximo encontro.
Ana Lúcia.

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O crime do silêncio

“Para mim, um quadro deve ser algo amável, alegre e belo, sim, belo. Já existem muitas coisas desagradáveis na vida. Para que inventarmos mais?” (Pierre-Auguste Renoir)

Decididamente, ter um minuto de silêncio e privacidade naquela casa era um crime, crime contra a família. Sempre morei debaixo do mesmo teto com muitos parentes meus, que nos meus momentos de raiva imaginava como bichos fugidos de um zoológico.

Eu tinha pai, mãe e dois irmãos menores. Até aí, tudo bem. Mas também moravam conosco os quatro avós, um tio de cada lado com seu cônjuge e filhos, o primo mais velho que engravidou descuidadamente uma moça e agora estava ali com ela e a criança e uma tia-avó da minha mãe, senhora de mais de oitenta anos, meio caduca e que não podia mais viver sozinha. O motivo dessa aglomeração era basicamente um: todo mundo ali achava lindo família enorme. Depois vinham as outras razões: ninguém podia ser feliz morando sozinho, era uma tradição... Sobretudo, a “bela” união daquelas pessoas garantiria um poderoso escudo contra os males da nossa sociedade moderna. Claro que, quando adolescentes, os filhos se rebelaram contra essa regra e foram tentar a vida longe dos parentes. Mas fracassaram e acabaram voltando, debaixo do “eu não disse?” dos pais. Mesmo assim, acho que o único ali que realmente tinha uma desculpa para vir morar com a gente era o tio Henrique, vítima de uma enchente do rio Amazonas, que levou tudo o que ele tinha. No entanto, ele criou outro negócio logo e continuou morando ali muito tempo depois. Os outros eram todos um bando de oportunistas, loucos para viver naquela casa bonita e espaçosa, localizada num bom bairro. Quando meus pais a compraram, como foi em parceria, combinaram que por causa disso ambos tinham o mesmo direito de abrigar os próprios parentes. Meus avós já estavam com eles, e pouco depois eu nasci. Muitos foram chegando aos poucos, durante os meus primeiros dez anos de vida.

Quartos havia muitos, cada casal tinha o seu. As crianças tinham dois quartos, um para os meninos e outro para as meninas. E eu nunca gostei disso, porque nunca pude dispor de um cantinho para ter privacidade, um mínimo que fosse. Pelo menos até os dez anos.

Mas isso não fazia grande diferença, pois quem disse que eu tinha esse direito? Se estava lendo um livro, ou só pensando em qualquer coisa, já vinha alguém me perguntar por que não estava brincando com meus irmãos e primos, ajudando a minha mãe nos afazeres domésticos ou pelo menos estudando. Como se não estivesse fazendo nada! E pouco importava que respondesse que gostava de passar o tempo assim. De pronto me expulsavam “delicadamente” do recinto, porque os adultos queriam ver televisão ou ter conversas que as crianças não devem ouvir. De qualquer forma, jamais conseguia me concentrar de novo depois que isso acontecia. Sempre havia gente andando pela casa, gritando, o volume da televisão ou do rádio sempre alto, o choro de algum bebê (porque sempre houve pelo menos um bebê ou criança pequena naquela moradia)... Sorte que nunca precisei estudar muito, pois aprendia só ouvindo a professora.

O fato é que nunca suportei conviver com muito barulho, por isso me sentia constantemente atropelada nos meus desejos, mesmo não sabendo definir esse sentimento durante muito tempo. Hoje acredito que, de algum jeito, devo ter nascido com uma tendência a falar pouco e me recolher mais, o que, graças às circunstâncias, foi-se acentuando até beirar o silêncio total. Não eram nem um pouco raras as seqüências de dias em que eu só dizia algumas palavras em casa, a maior parte monossílabos constantemente irritados. Se expusesse meus sentimentos e idéias, sabia que eles acabariam devastados pelo pensamento vigente. E seria considerada ainda mais estranha, pois só com o silêncio já tinha conquistado a fama de “esquisitona”, de “ovelha negra” da família. Via isso nos olhos deles, e eis outra coisa que odiava. Além deste comentário, que ouvi não sei quantas vezes:

-Essa menina é muito estranha, a gente tinha que levar no médico...

Por que nunca, uma vez que fosse, algo assim:

-Carolina é uma menina que precisa de silêncio.

Apenas fora dali é que consegui alguma esperança de compreensão e incentivo. Nas aulas de Artes, descobri meu talento para o desenho e a pintura. A professora acabou se tornando uma grande amiga, era para ela que eu levava os esboços dos meus futuros quadros. Mesmo assim, demorou muito para tomar coragem e comprar os meus primeiros materiais de pintura, pois não via um espaço que pudesse transformar no meu ateliê. E não queria que ninguém dentro de casa soubesse que ia pintar, não queria me expor ao ridículo.

Até que meus pais fizeram uma boa faxina numa salinha da garagem usada para guardar ferramentas, latas de tinta e mais tranqueiras. Claro que muita coisa continuou lá, diminuindo o espaço, mas fiquei tão contente que comprei o material, e mãos à obra.

Comecei transformando os meus melhores esboços em quadros. Depois passei por um período sem pintar porque nenhuma idéia que me vinha era boa, nenhuma me entusiasmava a gastar tela. Na verdade, foi só quando ouvi falar da Frida Kahlo na escola que descobri o que realmente queria: me retratar. É que até então pensava que isso seria um egocentrismo imperdoável da minha parte, mas quando vi os trabalhos dela, pensei: “Se ela pode, por que eu não posso também?” Por isso, creio que ela foi a minha primeira grande mestra.

Então, dos dez aos quinze anos, passei a fazer quase que somente isso. Representava-me sempre sozinha e feliz. O que mudava eram os objetos que segurava, as roupas que vestia e algum detalhe físico que experimentava mudar. Por exemplo, ora me pintava loira, ora ruiva, ora com diferentes tons de castanho nos cabelos, embora eles na verdade fossem castanho-claros. Meus olhos, que são da mesma cor, o nariz arrebitado, as bochechas grandes, o queixo redondo, os lábios grossos, tudo isso ia sendo modificado nas minhas pinturas. Mas não é que eu quisesse ter outra aparência, adorava a minha. Aquilo eram apenas experiências. De vez em quando, tentava investir em algum outro tema. No entanto, os meus quadros mais elogiados, e os que eu realmente tinha mais prazer de pintar foram os auto-retratos.

Até que aconteceu, foi quando eu tinha quinze anos. Quando um dos meus primos passou no vestibular para Medicina, claro, todo mundo estava alegre. Meu avô ia perguntando a cada neto o que queria ser quando crescesse, ou no que pretendia se formar. Quando chegou a minha vez, disparei, bastante empolgada:

-Artes Plásticas, mas ainda não sei se na Federal ou na FAP!

Nossa, parecia que eu tinha dado o pause numa fita de vídeo, porque ninguém se mexia, ninguém falava, tudo ficou suspenso no ar. Mesmo os mais novos obedeceram instintivamente a essa imobilização dos pais, foi algo inacreditável. Mas o pior veio alguns segundos depois. Meu pai chegou perto de mim e gritou, ríspido:

-O que foi que você disse, Carolina? Repete!

Isso foi o suficiente para que a mobilidade da cena voltasse, mas jamais outra vez aquele ar festivo de pouco antes. Quando chego nessa parte, simplesmente não consigo lembrar com detalhes das discussões histéricas que se seguiram. Algumas vezes, o enxame furioso de vozes se converte num zumbido sem palavras, alto e eficaz apenas para me sentir atordoada e irritada ao mesmo tempo. Em outros momentos, dá para recordar com clareza algumas palavras esparsas, o que me faz pensar que foi naquele preciso instante que descobri o motivo daquela reação: o irmão mais novo do meu pai “se meteu também a ser artista”, e o resultado foi que acabou um “inútil, drogado e alcoólatra”, morrendo de AIDS de uma maneira horrorosa. Foi assim mesmo, bem por cima, que fiquei sabendo da história desse tio. Embora fosse um tabu dentro daquela casa, todos os maiores de idade sabiam daquilo, para que se mantivessem afastados daquele caminho. E de pouco adiantou que eu contasse como tudo começou, mencionasse os quadros na garagem, e ainda alfinetasse dizendo que era só quando estava sozinha com eles é que me sentia bem-acompanhada, e não no meio daquela barulhenta família.

Foram vários dias de silêncios ou de brigas retumbantes, sem meio-termo e sem trégua, o que deixava a atmosfera da casa praticamente irrespirável.

Mas me orgulho em dizer que fui eu quem disse a última palavra. E adoro imaginar a seguinte cena: de manhãzinha, alguém sentou-se na frente do computador comunitário, provavelmente pensando que seria o primeiro a utilizá-lo. Enganou-se, pois só estava em modo de espera. Quando voltou ao plano de trabalho, outra surpresa, esta bem mais aterradora: havia um arquivo minimizado na barra inferior. Não sei se chamou todo mundo para saber de quem era (pois estava assinado apenas como Documento 1), ou se a curiosidade veio antes; ele deve ter aberto, sozinho ou cercado – pouco importa. Eles devem ter ficado abismados, como se estivessem vendo uma obscenidade sem nome.

E, no entanto, não passava de um álbum de fotografias que eu tinha feito no colégio, exibindo todas as minhas obras, até as que visivelmente não eram boas. Todas muito bem catalogadas, com título e data. Arrisco até a dizer qual foi a que mais os deve ter confundido: foi uma das últimas, em que me retratava loira de olhos verdes e vestida de odalisca, inspirada em “Jeannie é um gênio”. Sempre feliz, a figura do quadro segurava na mão uma esmeralda, na verdade empunhando-a como se fosse uma espada, mas com a graça de quem brande uma castanhola. (Nem eu sei, até hoje, como consegui esse efeito, simplesmente me escapou do pincel.) E encaro o observador com uma expressão zombeteira, mas que segundo Gustavo não deixava de ser graciosa...

Quando eles viram essa exposição digital, já era tarde demais – eu já tinha fugido na noite anterior com Gustavo, o namorado de que todos ali ignoravam a existência. E fiz questão de levar todos os meus quadros, com medo de que eles fossem queimados ou coisa parecida. (Desde o dia em que tiveram início as brigas, fui levando-os de pouco em pouco para a casa dele e da professora de Artes...)

Observação: Este é o depoimento da artista plástica Carolina Glória de Miranda, aos vinte e cinco anos, para sua psicóloga, Dra. Hilda de Andrade, após dois meses de terapia.

Fim.

Data: 12 de agosto de 2009.

sábado, 12 de setembro de 2009

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

PUC-PR promove X Fórum de Letras

PUCPR promove X Fórum de Letras
Evento acontecerá nos dias 30 de setembro, 1º e 2 de outubro
O curso de Letras da PUCPR promove, nos dias 30 de setembro, 1 e 2 de outubro, o X Fórum de Letras. O evento contará com a presença de palestrantes e profissionais renomados da área, como o linguista Sirio Possenti, da Unicamp, e Miguel Sanches Neto, escritor e pró-reitor da UEPG. A programação refletirá sobre temas contemporâneos da Linguística, Literatura e áreas correlatas. As inscrições devem ser feitas no site.

Confira a programação:

Dia 30/09
19:00- Palestra de Abertura- Miguel Sanches Neto (Escritor e Pró-reitor UEPG)
20:30- Momento cultural
21:00- Mesa redonda: A literatura e suas relações:Marilene Weinhart (UFPR)
Marcelo Franz e José Carlos. Nilma Almeida (mediadora)

Dia 01/10
18:00- Lançamento de livro - Daniel Osiec
19:00- Palestra: Sírio Possenti (Unicamp)
Palestra: Egídio Romanelli PUCPR (A neurolinguística)
20:30- Momento cultural
21:00- Comunicações e mini-cursos/ Noite de autógrafos: Luiz Andriolli.

Dia 02/10
18:00- Comunicações
19:00 Mesa redonda: A aquisição de linguagem em situações especiais- Rossana Finau (UTFPR), Deizi Link , Cayo Martin, Angela Gusso (mediadora)
20:30- Momento cultural
21:00- Mesa redonda: Geraldo Peçanha de Almeida (Pro-infante) e Elizabete. Mediadora: Catia Toledo
22:15- Entrega do prêmio do concurso de contos Marina Colasanti
Encerramento.

Local: Auditório John Henry Newman (Biblioteca) e Tomas Morus (CTCH)


Mostra paralela: Salas temáticas:
Língua estrangeira e Cultura do Paraná.