terça-feira, 27 de julho de 2010

Estudor

Sabe aquele caderno em espiral é mentiroso, mas o caderno grampeado é verdadeiro.
Os bloquinhos de anotações são depósitos de ilusões, e o marca-texto é provocação.
A borracha apaga pecados, e o grafite sempre em dúvida, é indeciso. O lápis de cor faz teatro, enquanto o guache enfeita os desejos. Papel almaço resume histórias, o editor de texto salva da sedução. Planilha de cálculo faz as contas dos beijos, e os olhos fazem as vezes do coração.
Livro é suporte do monitor que escraviza, e a impressora já está bipolar. O lixo é boa companhia para os erros do crescimento, mas o telefone é fofoqueiro, escandaloso.
Régua cansada se entorta, e a caneta seca, sem tesão.
Cadeira conforta as nádegas surradas com suor pelo medo de ficar com zero.
Os armários guardam notícias em pastas fruta-cor, e caixas pretas não se revelam.
Pincel atômico vazou de tanto rir, pelo calendário que desmaiou.
E assim, a vida fugiu do compromisso da dor.


sexta-feira, 23 de julho de 2010

Branca de Neve através do Espelho

Por Valéria Broliani

Meu nome sempre foi relacionado à verdade. O que muitas pessoas não sabem é que podemos ser mágicos. Aquele que se dispor a realizar nossas vontades, terá o que mais deseja durante sua existência humana.

Há um tempo atrás, pertenci a uma mulher obcecada por sua beleza. A vida não lhe foi justa porque levou cedo demais os que amava enquanto se tornava cada vez mais velha e infeliz. E isto não conseguia suportar. Foi quando então olhou-se no espelho e desejou com todas as forças a sua juventude e nunca mais envelhecer para não ter a angústia de ver a própria beleza fenecendo aos poucos. Isso fez com que meus poderes mágicos despertassem e eu me revelei como no momento em que uma pedra toca a superfície de um lago calmo. Eu poderia ajudá-la, mas ela teria que me entregar os corações das mais belas jovens para permanecer com o seu maior tesouro.

No vilarejo em que morava, havia muitas camponesas cheias de sonhos. Durante o dia, andavam sozinhas pelo bosque colhendo flores e trazendo água de um riacho próximo. Numa das primeiras manhãs de primavera, a velha foi até lá e, escondida entre as árvores, ficou observando uma moça. Lembrou dos tempos em que era nova e linda assim como aquela diante de seus olhos e foi sentindo um ódio que crescia tomando conta de todo o seu corpo cansado e frágil. Quando a jovem chegou à margem, levou um golpe de punhal nas costas e caiu, sendo apunhalada inúmeras vezes até a morte. A velha abriu-lhe o peito arrancando o coração ainda quente. Jogou-o numa bolsa de pele de corça e empurrou o corpo nas mesmas águas frias em que lavou as mãos. Caminhou pelas ruelas até a sua casa tranquilamente, sabendo que era apenas o início de uma vida secreta. Entregou-me o coração e esperou pela noite. No dia seguinte, procurou pelos primeiros sinais de rejuvenescimento em seu rosto, mas ainda era cedo. Percebeu apenas o seu olhar diferente. Eram olhos famintos agora.

Os habitantes da pequena vila ficaram aterrorizados com o crime somado aos outros que se sucederam. Ela tramou muitas artimanhas para não levantar suspeitas, até o momento em que a vizinhança percebeu uma estranha na casa da velha solitária. Justificou que a senhora estava muito doente e era uma parente distante que veio cuidar dela. Logo depois abandonou o lugar para sempre. No caminho, teve um problema com a carroça e um rei que passava no mesmo instante, parou para ajudar e acabou fascinado por tamanha beleza.

Algum tempo após o episódio, casou-se com ele somente para satisfazer sua vaidade e ser a mais bela do reino, adorada pelo seu povo. O rei era viúvo e tinha uma filha. A menina tinha a pele branca como a neve, os cabelos negros como o ébano e as faces carminadas como o sangue. Era encantadora.

O marido não entendia como a cada ano que passava, sua esposa ficava ainda mais bonita. Pouco antes da princesa completar sete anos, a rainha viveu sua época mais exuberante. Seus cabelos eram da mesma cor das folhas tocadas pelo pôr-do-sol no outono. Os olhos eram verdes e instigantes como se guardassem almas múltiplas e seus lábios eram atraentes como cerejas frescas. Entretanto, a partir do sétimo aniversário da menina, sua beleza se apagava diariamente.

Era noite alta quando a rainha começou a andar de um lado para o outro no quarto. O rei percebeu sua aflição perguntando o que havia acontecido mas ela não lhe deu resposta. Apenas deitou em seus braços deixando escorrer uma única lágrima e logo adormeceram. Num sobressalto, acordou com a impressão de um pesadelo e lembrou da dama de companhia da princesa que era a serviçal mais jovem do castelo. Na manhã seguinte, sua enteada sentiu falta da criada, mas ninguém a encontrou. Somente dias depois soube-se que o corpo da moça havia sido encontrado na floresta com a garganta cortada e o coração arrancado.

A rainha não estava satisfeita e me questionou porque continuava a envelhecer tão rápido. Eu expliquei que conforme os anos do nosso acordo passassem, ela teria que me oferecer mais corações ou deixaria de ser tão formosa. Ainda assim, se ela me trouxesse o coração mais puro da mais bela da redondeza, ganharia mais tempo.

- Espelho meu, se revelar na sua superfície a dona do coração mais puro poderei cumprir a tarefa mais depressa. – pediu a rainha. E eu respondi:
- Ainda não sabe? Está mais perto do que imagina.
- A princesa... – falou admirada como quem acabara de descobrir o motivo de um sentimento que a intrigava, como se os seus olhos estivessem vendados para a realidade que se mostrava agora. Em seguida, certa da ação, pensou numa maneira de acabar com a filha do próprio marido. Numa tarde nublada e fria, depois que o rei saiu em viagem, ordenou que um caçador levasse a garota para a floresta e a matasse trazendo o seu coração como prova da morte.

Chegaram na floresta sob o pretexto de ver os animais silvestres, mas o rude homem apiedou-se diante da linda e meiga menina a implorar pela vida quando entendeu que estava ali para morrer. Ela lhe prometeu nunca mais voltar ao castelo e assim nunca ninguém saberia o que realmente aconteceu naquele dia. O caçador aceitou, pois uma vez na floresta junto aos animais ferozes, a morte dela era certa e ele não carregaria a culpa de um crime. No caminho, por entre as árvores, avistou um filhote de cervo e foi deste o coração que entregou.

Quando o recebi das mãos da rainha, não percebi que era de um animal nem tampouco ela desconfiou. O rei voltou sete dias depois e soube do desaparecimento de sua filhinha. Durante a viagem, ouviu histórias de uma aldeia vizinha sobre a morte de várias jovens cujos corações foram arrancados assim como acontecera com a serviçal do castelo. Como não encontraram nenhum vestígio da princesa, restou a esperança de encontrá-la viva. O tempo passou e notícias não chegaram. O rei era tomado cada vez mais pela tristeza por não saber notícias de sua querida filha e também por não ter outro herdeiro. A verdadeira idade da rainha jamais permitiria que lhe desse filhos. Era uma mulher belíssima por fora porém tão seca quanto uma uva passa por dentro.

Durante um período a menina vagou assustada pela floresta. À noite, relâmpagos e trovões deixavam o lugar ainda mais aterrorizante. Na chuva, ela correu sem rumo ferindo seus pés delicados e arranhando nos espinhos sua pele alva que aos poucos foi marcada por riscos vermelhos de sangue. De repente, viu uma clareira e nela o acampamento de um circo que se apresentava nos arredores do reino. Um velhinho com cara de duende a acolheu mortificado com os últimos acontecimentos de sua vida. Disse que poderia juntar-se à eles se não lhe importasse conviver com os seres mais espantosos da região. Muitos eram excluídos da sociedade e passavam a viver no circo e ela sendo tão bonita poderia não se adaptar. Mas era a jovem com o coração mais puro que exisitia e aceitou a ajuda.

A rainha gastava horas se admirando à minha frente e pouco a pouco continuava envelhecendo. Não demorou a notar que tinha sido enganada. Seu marido logo adoeceu misteriosamente. Uns diziam que era a falta da filha, outros falavam que a esposa não lhe dava atenção. Ainda havia os que justificavam que o mal procedia das duas coisas. Ele morreu sozinho.

O castelo estava vazio. A antiga solidão voltava a assombrar os dias da rainha. Eu lhe mostrei o que aconteceu naquela tarde em que sua enteada desapareceu. Ela pensava num modo de realizar a sua tarefa para recuperar a mocidade que estava se perdendo com as rugas que surgiam. Dispensou muitos empregados e passou a ficar mais no quarto. Saía muito pouco e quando o fazia, cobria o rosto com um véu. Numa manhã, olhou-se no espelho e viu que não podia mais ser reconhecida. Separou todos os livros de magia que pertenceram às suas ancestrais e descobriu vários feitiços, em especial, o da maçã encantada.

No acampamento, a princesa vivia momentos difíceis. As mulheres sentiam inveja de sua beleza e alguns homens a perseguiam. Havia alguns meses que o circo estava no mesmo lugar e em breve retornaria à estrada. Teria que partir também. Não sabia se com o grupo ou sozinha. Soube da morte de seu pai e chorou muito, por ele e por ela.

Enquanto o pessoal arrumava seus pertences para seguir viagem, uma velha camponesa apareceu por lá vendendo maçãs. Ela enxergou a garota mais afastada, do outro lado da clareira e foi ao seu encontro.

- Maçãs, mocinha? Olhe como estão apetitosas. – pegando a maçã enfeitiçada. Tinha sido habilmente preparada para ser a fruta mais perfeita e saborosa: por dentro suculenta e por fora de um vermelho tentador e com um perfume capaz de aguçar qualquer paladar, mas quem a provasse certamente morreria envenenado.
- Não tenho dinheiro, senhora. – disse a menina.
- Então será um presente. Já é tarde e acho que não vou mais conseguir vendê-las hoje. Será como uma bendição de uma velhinha para uma jovem cheia de vida pela frente.

Não teve como recusar algo de uma senhora tão gentil e amável. Parecia deliciosa e rapidamente deu uma boa mordida. Ela caiu desmaiada e quando a madrasta pensou em arrastá-la para dentro da floresta para abrir-lhe o peito, percebeu que um anão ao longe vinha prontamente. Apanhou a maçã da mão da enteada e correu com dificuldade sumindo mata adentro.

- Depressa, ajudem! – gritou o anão.

Ele falou da velha que havia fugido mas ninguém encontrou sinal algum. Também não acharam ferimento na menina, simplesmente estava sem vida. Ocupados com a mudança, poucos repararam a presença da camponesa com as maçãs e agora nada mais lhes restava a não ser enterrar o corpo. Mas o senhor que a recebeu não deixou que o fizessem. Chorou sobre o cadáver e corrido três dias e três noites continuava com o mesmo viço como se ela estivesse apenas dormindo. O homem então decidiu levá-la na viagem pois não poderia simplesmente abandoná-la sob a terra escura.

Os anos passaram conservando sua pele alva como a neve, seus cabelos sedosos e negros como o ébano e suas faces carminadas como o sangue. Em uma de suas andanças, chegaram ao reino vizinho ao da princesa. Uma multidão os acompanhou até a frente do palácio onde saudaram o rei. Do alto do balcão, o príncipe viu dentro de um dos carros a bela dormindo num esquife de vidro. Ele ordenou que trouxessem o responsável pelo circo para saber quem era a moça mais linda que até então tinha visto. O viajante contou de sua origem nobre e de sua sorte. O jovem herdeiro lamentou o destino cruel da princesa e pediu para ficar com ela prometendo dar-lhe as honras que prestam ao seres mais amados. Como já estava muito velho e temia o futuro, disse ao rapaz que poderia ir buscá-la no acampamento.

O príncipe se dirigiu até lá com alguns serviçais que prenderam o esquife na parte superior da carruagem e mandou que conduzissem até o castelo. No caminho, um movimento abrupto fez com que pulasse da boca da garota o pedaço de maçã que mantinha entalado na garanta. Ela respirou profundamente, abriu os olhos e começou a bater nas paredes de vidro. Os criados abriram a tampa surpresos e o nobre pendurou-se no carro feliz em vê-la com vida:

- Onde estou? – perguntou a jovem.
- Está comigo. Vou levá-la para o castelo do meu pai onde você estará livre das maldades de sua madrasta e se tornará minha amada esposa.

A princesa ficou maravilhada com a gentileza e o amor do príncipe e aceitou casar-se. O rei ficou tão alegre com o casamento do filho que ordenou a realização da festa mais linda da redondeza. Centenas de pessoas foram convidadas, entre elas o seu protetor e a madrasta. Esta teria retornado à floresta dias mais tarde ao envenenamento em busca do corpo da enteada, não encontrando vestígios do enterro. Curiosa para conhecer a princesa cuja formosura era enaltecida, foi ao baile coberta por um véu negro e teve uma surpresa ao vê-la. A noiva procurava com os olhos a rainha má entre os convidados e somente a reconheceu quando avistou em seu dedo um precioso anel que pertencera à sua mãe. Arrancou-lhe o véu e lembrou do olhar inconfundível de sua madrasta, não lhe restando dúvidas. Os soldados a seguraram e, à força, colocaram-lhe sapatos de ferro. Ela foi condenada a dançar sem parar sobre um braseiro até a morte.

Com isso, os dois reinos foram unidos e os pertences da madrasta em grande parte foram queimados. Eu fui coberto por uma pele de corça e guardado num depósito em uma torre onde quase nunca aparece ninguém, mas ainda tenho a distração de ver o que acontece em todo o território. Sei que a mais bela menina do coração mais puro se transformou numa admirável mulher. Está feliz e plena pois se tornou mãe de uma linda princesinha. Há também uma outra garota aqui. Ela foi abandonada por uma camponesa numa das portas laterais do castelo e a jovem de pele alva que agora é uma rainha, batizou essa pobre menininha e lhe dá toda a assistência necessária. Muito curiosa, às vezes ela vem até o depósito. Já me descobriu algumas vezes para admirar o seu reflexo, mas existe alguma coisa em seu olhar que me é familiar. Como não tenho o dom de ver o futuro, somente os fatos que já ocorreram, não sei o que está reservado para esse lindo e tranquilo reino...