segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Intimidade

Penso que uma das contribuições mais importantes da literatura, ao menos para mim, é poder discutir a vida humana sem disfarces. Afinal, num bom livro entramos diretamente em contato com a alma dos personagens, sendo esta a parte mais importante de uma pessoa. Ou então suas ações, pensamentos e sentimentos estão organizados de maneira a descobrirmos quem esse personagem é. O que muitas vezes acaba se revelando um espelho que se volta para nós mesmos, que lemos.
Estou dizendo isso por causa de um livro que li durante estas férias, "Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres", de Clarice Lispector. Um dos elementos que achei mais geniais nesse romance é que os personagens, Loreley, apelido Lóri, e Ulisses desenvolvem uma relação na qual falam abertamente o que sentem e pensam, sem perder tempo com amenidades ou bobagens. Ela é capaz de ligar para ele no meio da noite e dizer algo como: "Que é que eu faço, é de noite e eu estou viva. Estar viva está me matando aos poucos, e eu estou toda alerta no escuro". E ele compreende, e diz sempre exatamente o que ela precisa ouvir! Talvez justamente por conta dessas declarações diretas dela e dessa compreensão e franqueza dele, a princípio esse relacionamento parece muito frio e formal. No entanto, ele consegue ser muito mais real e verdadeiro do que grande parte dos nossos relacionamentos, ou talvez até mesmo da totalidade deles. Exatamente por causa da tal da intimidade, que para mim é compreender o outro, mesmo que ele se faça hermético, agir conforme a necessidade dele e, principalmente, ter e dar a liberdade de falar o que vier à cabeça do jeito que veio, mesmo que seja uma epifania nascida do perfume de jasmim sentido de madrugada.
De quantos conhecidos nossos podemos dizer que realmente temos intimidade para falar, por exemplo, da epifania nascida do perfume de jasmim sentido de madrugada? Geralmente, sentimos medo: da incompreensão, do que o outro pensará de nós, do deboche, da raiva... O mais triste é que tem gente que passa a bloquear todo e qualquer sentimento, pensamento ou ação que fuja do entendimento comum, mesmo que faça sentido para elas. Quem opta por permanecer tendo percepções incomuns geralmente acaba se escondendo, falando de bobagens mesmo com os amigos, como se não precisasse deles mais do que para isso. Muitas vezes, não sabemos pôr coisas realmente importantes para nós em palavras, e o meio não ajuda, ou seja, os que nos cercam são obtusos. Este foi um dos motivos, aliás, que levou Anne Frank a escrever o diário, e é uma das frustrações do aviador que encontra o Pequeno Príncipe. Sendo assim, a minha pergunta é: será que estamos capacitados a criar laços de intimidade com nossos semelhantes? Pois, se até mesmo para pedir ou extravasar algo muito menos complexo, como um aumento de salário ou acordo com o ex, usamos dos mais variados subterfúgios, desde rodeios até chantagens sentimentais... Isso é intimidade?
Com a falta de intimidade e o excesso de disfarces, cada vez menos nos sentimos refletidos nos outros, os de carne e osso que convivem conosco. Eles não nos servem de espelhos da nossa humanidade, por isso que cada vez mais nos sentimos sozinhos. É por isso que muitas vezes as pessoas vão buscar consolo em fontes como a literatura (escritores, muitas vezes já mortos e seus personagens), Internet (amigos virtuais), culto a ídolos, entre outras formas de evasão - o que não é uma atitude saudável, se praticada o tempo todo. E muitas vezes sentem que esses personagens virtuais - ou seja, que fazem parte de uma realidade em potencial, que não é verdade verdadeira por alguma razão - são mais reais do que as pessoas com quem já convivem, na sua própria realidade.
In Memorian
Dedico esta coluna a Moacyr Sciliar, falecido ontem. Não tenho muito o que dizer, não li muita coisa dele, mas de certa forma ele fez parte do meu Ensino Fundamental, ao lado de Luís Fernando Veríssimo e Ana Maria Machado, pois é um dos escritores favoritos dos livros didáticos. O pior é que eu poderia tê-lo conhecido, num Paiol Literário ocorrido, creio, no ano passado. Mas só fui descobrir isso tarde demais. De qualquer forma, adeus, Moacyr Sciliar.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Por uma TV melhor

"Zapeando" pela Internet, acabei encontrando o texto de Ale Rocha desta semana, "Insensato telespectador", que gerou muita polêmica, como se pode ver nos inúmeros comentários abaixo. Para quem não sabe, Ale Rocha é o colunista de televisão do Site Yahoo!.
Criticando a novela "Insensato Coração", ele escreve que há cenas provocando a revolta dos telespectadores, a ponto de o Ministério Público ter sido acionado e a trama estar arriscada a ser indicada para só a partir dos 14 anos, ou seja, só poder passar a partir das 22h. E os autores, Gilberto Braga e Ricardo Linhares, estariam se acomodando ao apresentar apenas personagens divididos entre o bem e o mal e o tal do "realismo", conseguido através das cenas de sexo e barracão. Para Ale Rocha, portanto, os telespectadores e os autores são ou estão caretas, pois o maniqueísmo poderia ser ultrapassado e idéias consideradas retrógradas poderiam ser discutidas, mas não são. Pelo que li dos comentários posteriores, muitos ficaram incomodados com essa utilização da palavra "careta", entendendo que o autor maldiz o pensamento ou atitude de defender valores moralmente aceitos e que seriam necessários à formação pessoal de crianças e adolescentes. Ainda segundo Rocha, muitos pais negligenciariam a educação, ou a transfeririam ao Estado, por isso a tentativa de tornar as tramas "caretas".
Não posso opinar sobre a novela diretamente, pois não a assisto. Mas tenho que concordar com quem diz que ninguém é obrigado a ver nada, pois tem o controle remoto. Eu iria até mais longe: que tal tentar desligar a TV uma vez por semana e procurar passar o tempo ou se divertir de uma forma completamente diferente? Além disso, as pessoas que denunciaram a novela ao Ministério Público alegaram que as cenas de sexo e barracão são exibidas às 21h10min, quando as crianças e adolescentes ainda estão na sala. Quando eu era criança, ia dormir entre 20h30 e 21h - minha mãe punha eu e o meu irmão na cama para poder ver as novelas desse horário. E isso nos anos 90, quando muitos dos meus colegas viam as novelas, às vezes até as minisséries. Eu comecei a ver novela com 11, 12 anos, e sempre com pelo menos a minha mãe por perto. Mesmo assim, demorei um pouco mais para começar a ver novela que passa às 21h. Nos intervalos, a gente discutia o que tinha acabado de ver. Ou seja, muita coisa ainda depende dos pais, mesmo. Não estou querendo dizer que a minha família tinha a postura mais correta com relação a esse assunto, até porque a minha mãe era só dona-de-casa, algo que já não fazia parte da realidade de muitas mulheres naquela época. Mas acredito que é possível, sim, controlar o que os filhos vêem.
Isso não quer dizer que a TV também não tenha responsabilidade pelo que veicula. Sabemos que muitas vezes ela banaliza sexo e violência em busca de pontos no ibope. E, se ela recorre a esses expedientes, é porque há muita gente assistindo, ou seja, o telespectador também tem culpa. No entanto, a situação dos teledramaturgos é bastante complicada, pois têm que render audiência, ou seja, se submeter às vontades de quem vê, que hoje está cansado do modelo de novela vigente, e no entanto não podem realmente ousar muito, tanto nos temas, pois há muito conservadorismo, tanto do povo como da emissora, como na narrativa, porque a maior parte dos brasileiros não está preparada para apreciar outras formas de narrativa, ou talvez personagens mais humanos, incluindo mocinhos mais humanos. É uma tarefa ingrata, escrever para um povo culturalmente bastante heterogêneo durante uma média de nove meses, mantendo a audiência. Lembro de um desabafo que li do Sílvio de Abreu uma vez, que falava que o povo tem uma relação mais emocional que intelectual com os personagens apresentados, e por conta disso os criadores não têm muita saída além de apelação e repeteco. Embora não concorde totalmente com isso, também pergunto: como fazer?
Concordo com um comentarista que disse que a emissora precisa contratar gente nova. Mas acrescentaria: precisa também flexibilizar suas regras teledramatúrgicas, afinal elas vêm dos anos 60! O Brasil era outro! E os pais precisariam retomar sua autoridade, para voltar a controlar o que os filhos vêem, saber que há outras opções no mesmo horário, ou mesmo desligar a TV e fazer outra coisa, em vez de ficar engolindo algo "menos pior", seja novela, seja qualquer outro tipo de programa. Seria o movimento dos telespectadores para que a televisão volte a ser feita de maneira mais inteligente. E algo tão insubstituível quanto a educação moral é a educação intelectual: o gosto pela cultura (leitura, museus, filmes de arte, etc.) deveria ser cultivado desde a infância, para que as novas gerações entrem em contato com outras possibilidades de histórias e personagens, estando mais preparadas para aceitar (ou mesmo repudiar) novas narrativas na telinha.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Diferentes formas de lutar pelos direitos

"Todo homem é magistrado quando se trata de salvar a pátria." Creio que esta frase, encontrada no livro "Da república", de Cícero, é a que explica a excelente notícia veiculada na semana passada: quem foi vereador em São Paulo em 1993 e 1994 (um total de 55 pessoas) está condenado a devolver, cada um, aos cofres públicos, 98 mil reais, por terem aumentado ilicitamente os próprios salários. E isso graças a quem? A quatro cidadãos paulistanos, que processaram esses políticos e tiveram que esperar "só" 17 anos para que a justiça fosse feita. Esses pacientes guerreiros deveriam ser levados ao programa da Marília Gabriela, tanto no SBT como na GNT, para explicar como foi essa saga. Além disso, essa história deveria ser publicada em livro, para depois virar filme. Eis os nomes desses cidadãos: o engenheiro Raymundo Medeiros, a secretária Rosemary O´ Neil Minson, a dona-de-casa Francisca Belizia Shlithler e o representante comercial Paulo Antonio de Oliveira, todos representados pelo advogado Marco Antônio Rodrigues Barbosa.
Esse tipo de notícia, nem preciso dizer, é alentadora. No mesmo dia em que a recebi, sexta-feira passada, pensava desanimada no seguinte contraste: em 1992, conseguimos depor um presidente da República. Mas em 2010, no caso aqui do Paraná, a movimentação popular não conseguiu fazer renunciar o presidente da Assembléia Legislativa de Curitiba (antes de ter sido reeleito, claro). Como é que pode? Também tivemos, também no ano passado, outra vitória, que foi a aprovação da Lei Ficha Limpa, que no entanto é motivo de piada: os alvos juram que não são fichas-sujas e fica por isso mesmo. Um exemplo foi o senhor Cassio Taniguchi, que recentemente disse não fazer parte desse time porque, quando a lei foi aprovada, seus crimes (não foi essa a palavra que ele usou, lógico) já tinham prescrito! Junto a este, quantos casos no Brasil inteiro! E o pior é que o povo ratifica a corrupção e a incompetência, ao continuar votando nesses mesmos políticos. E também em aproveitadores que está na cara que não nasceram para a política.
Estes versos de Bertold Brecht (1898-1956) me fazem refletir: "A atitude crítica / É para muitos não muito frutífera / Isto porque com sua crítica / Nada conseguem do Estado. / Mas o que neste caso é atitude infrutífera / É apenas uma atitude fraca. / Pela crítica armada / Estados podem ser esmagados." Mas seria essa realmente a solução para nós, ou um problema pior ainda? Não há dúvida que às vezes não há outra saída. Por exemplo, a frase do começo desta crônica não é de Cícero, mas de um romano chamado Júnio Bruto Aparente, que chefiou o movimento popular que transformou Roma de monarquia em república, no ano de 509 a.C. Para que isso acontecesse, e a corrupção dos costumes da época pelos monarcas fosse corrigida, foi preciso que o povo se unisse para expulsá-los. De certa forma, foi o que aconteceu na Tunísia, que serviu de exemplo para que o Egito iniciasse a sua própria revolução, os dois expulsando ditadores do poder, depois de décadas. No entanto, esses casos - Roma, Tunísia e Egito - chegaram ao extremo, ou seja, possivelmente não haveria outra maneira de o povo lutar pelo que queria. Movimentos como o dos Caras-Pintadas e este episódio do pagamento dos vereadores de São Paulo mostra que existem outras formas de luta e obtenção de direitos, às vezes usando as ferramentas do próprio Estado, algo que não se deve perder de vista. O próprio Brecht terminava assim o seu poema: "A canalização de um rio / O enxerto de uma árvore / A educação de uma pessoa / A transformação de um Estado / Estes são exemplos de crítica frutífera. / E são também / Exemplos de arte."
Obs: Os dados da notícia foram retirados do site http://www.conjur.com.br/, que por sua vez se baseou na Folha de São Paulo.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Escrito rápido

Escrevo rápido, apenas para não deixar passar em branco esta semana. Hoje vocês vão me desculpar, mas estou sem muita inspiração. Este é um dos momentos em que, ao menos em mim, se cristaliza uma idéia que a maioria dos cronistas tem de si mesmo: na verdade, apesar de ser reconhecida como alguém que sabe escrever, não tenho nada a dizer!
Ficar sem inspiração é um risco que corre qualquer um que escreve regularmente, a não ser que se trate de um jornalista produzindo matérias. Por isso os cronistas costumam usar de certos truques, como anotar temas ou deixar umas crônicas para emergências, cozinhando em banho-maria. Também tenho as minhas crônicas e os meus temas, claro. Mas hoje não estou me sentindo à vontade para trabalhar com esse material. São como bebês, ainda não chegou a hora de eles virem ao mundo. E não me surgiu nenhuma outra idéia que me entusiasmasse, por isso que estou aqui desabafando tudo isto. Com o medo de não ter o que dizer me assombrando.
Falar nesse medo me fez lembrar do Carlos Heitor Cony. Quem lê as crônicas dele sabe: volta e meia ele afirma não ter o que dizer, e no entanto é sempre requisitado, como se fosse um homem sábio. Ainda não consegui decifrar se isto é ironia, modéstia (falsa ou verdadeira) ou se ele realmente acha isso de si mesmo, e a gente é que vê nele um homem sábio, simplesmente porque é diferente a visão acerca de um texto de quem o escreve e de quem apenas o lê. E muitas vezes essa diferença é gritante mesmo. Ao menos pelo que concerne a mim (entre meus conhecidos, sou tida por alguém que escreve bem porque vive escrevendo e lê bastante - apesar de na realidade terem visto bem poucas produções minhas, pois são raras as que tenho vontade de mostrar), essa visão é fruto principalmente da insegurança na hora de escrever. É claro que o texto que imagino é sempre muito melhor do que o que acaba saindo. E essa distância entre os dois, logicamente, é maior à medida que o tempo entre conceber e escrever vai aumentando. No entanto, nem mesmo começar a escrever logo que as palavras vêm é 100% garantido: sempre alguma coisa poderia ter saído melhor. Sem contar que muitas vezes não tenho certeza se consegui abordar o assunto com a profundidade que ele merece.
Enfim, acabou saindo uma crônica. No momento, estou gostando dela. Mas não sei até quando. Porque é muito comum também eu reler meus textos descobrindo erros e novas maneiras de tê-lo escrito. Mesmo depois de muito tempo que ele já cumpriu sua função, e todos que o leram já se esqueceram dele.