terça-feira, 31 de março de 2009


Hoje, a manhã pálida passou mais depressa
diante dos meus olhos adormecidos,
mas já não sinto o cheiro de solidão do jardim.
Perto da cerejeira, a noite agora desperta...

segunda-feira, 30 de março de 2009

A Literatura e o Labirinto do Tempo
Por Micheliny Verunschk

Neste exato instante, enquanto Homero, aedo cego, de existência duvidosa, recita a Ilíada, ao som de sua cítara, Dante escreve um verso, o último, de um poema: l'amor che move il sole e l'altre stelle (1). Ainda nesse mesmo recorte de tempo, Fernando Pessoa, em Lisboa, sente dúvidas a respeito de "Tabacaria", um poeta ainda não nascido vê o primeiro poema de sua vida num livro holográfico que sua mãe encomendou numa dessas lojas virtuais, e Jorge Luis Borges, tão cego quanto Homero, recita "O Labirinto", cujo centro é ele, Minotauro de si mesmo, para deleite e encantamento de María Kodama.

Este é o tempo da literatura, que não é o tempo cíclico, dado pelas transformações da natureza, mas também não é o tempo histórico, com suas manifestações e contradições socioeconômicas e culturais. E tampouco o tempo dos sentimentos e afetos, o tempo interior que cada ser humano vivencia como seu. Articulado entre todos os tempos, o tempo da literatura se estende como um continuum arquitetado entre permanências e rupturas, construção e destruição, coexistência num presente sempre presentificado, no ontem, no agora, no depois, como cogita Santo Agostinho: "[...] é impróprio afirmar que os tempos são três: pretérito, presente e futuro. Mas talvez fosse próprio dizer que os tempos são três: presente das coisas passadas, presente das presentes, presente das futuras" (2).

Esse cruzamento entre as categorias de tempo extrapola o meramente cronológico e permite que obras (tanto de prosa quanto de poesia) e autores de diversas épocas dividam a mesma fatia espaço-temporal. De que modo, ou modos, isso é possível? Para Marcel Proust, autor de Em Busca do Tempo Perdido, por exemplo, os escritores de todas as épocas estão a ocupar-se da criação de uma única obra, que funcionaria como o elo com a contemporaneidade. Diz, em A Prisioneira: "[...] Eu explicava a Albertine que os grandes literatos nunca fizeram senão uma única obra, ou melhor, refrataram através de meios diversos uma mesma beleza que trazem ao mundo" (3).

Bergson, filósofo francês, denomina esse elo de durée (duração), uma sucessão heterogênea de estados da consciência em contínua ampliação ou enriquecimento, um fluxo criador que, entre memória e realidade, está sempre em movimento e apontando para o devir. Para ele, a durée está na base do processo evolutivo como um impulso vital de onde todas as coisas surgem e se transformam pelo primado da força e da beleza. Esse processo evolutivo promove um retorno à natureza e à relação de justiça com o mundo muito próximo da "aliança com as coisas" de que fala a poeta portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen:

"A coisa mais antiga de que me lembro é dum quarto em frente do mar dentro do qual estava, pousada em cima duma mesa, uma maçã enorme e vermelha. [...] Não era nada de fantástico, não era nada de imaginário: era a própria presença do real que eu descobria. [...] Em Homero reconheci essa felicidade nua e inteira, esse esplendor da presença das coisas. [...] Sempre a poesia foi para mim uma perseguição do real. Um poema foi sempre um círculo traçado à roda duma coisa, um círculo onde o pássaro do real fica preso" (4).

Podemos afirmar que a literatura, como arte que agrega prosa e poesia, é, ela mesma, um work in progress que, à medida que se faz, prepara seus próprios autores e, mais, inventa, a seu modo e conforme suas exigências, seus próprios leitores. Estender-se, alongar-se, deslocar-se e transtornar-se pelo tempo é um jogo de criação. O espaço em que a literatura habita é a geografia do tempo e, desse modo, a vontade mais profunda não é outra senão o desejo de eternidade, com tudo de provisório que, é claro, cabe nessa palavra.

Neste exato instante, enquanto Jorge Luis Borges, aedo cego, de existência duvidosa, recita um verso de A Divina Comédia, ao som de sua cítara, Fernando Pessoa ajuda um poeta ainda não nascido a escrever um verso de seu primeiro poema: l'amor che move il sole e l'altre stelle. Ainda nesse mesmo recorte de tempo, Dante, em Lisboa, sente dúvidas a respeito de "Tabacaria" e Homero, tão cego quanto Borges, recita um poema, cujo centro é ele, Minotauro de si mesmo, para deleite e encantamento de María Kodama, perdida e encontrada para sempre no labirinto do tempo.

Notas
1. "O amor que move o sol e as outras estrelas."
2. Santo Agostinho. Confissões. Petrópolis: Vozes, 1990, p. 284.
3. PROUST, Marcel. Em Busca do Tempo Perdido. In: BERGEZ, D. et al. Métodos Críticos para a Análise Literária. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p.101.
4 ARÊAS, Vilma (org.). Poemas Escolhidos. São Paulo: Cia. das Letras, 2004, p. 155

Fonte: http://www.itaucultural.org.br/index.cfm?cd_pagina=2720&cd_materia=65

sábado, 28 de março de 2009

Ilustração

Como voltamos a comentar sobre o tema na aula, aí estão algumas imagens do trabalho de Gustave Doré para os contos de Charles Perrault:


A Bela Adormecida (La Belle au bois dormant)



Chapeuzinho Vermelho (Le Petit Chaperon rouge)



O Gato de Botas (Le Chat Botté)



Barba Azul (La Barbe bleue)



Cinderella (Cendrillon)



O Pequeno Polegar (Le Petit Poucet)

Fonte: http://lescontesdefees.free.fr/imagesHD/galerie_des_gravures_deHD.htm

Aproveitem e visitem um site dedicado à gravadora Maria Bonomi que também fez algumas ilustrações como no livro "Ou Isto ou Aquilo" de Cecília Meireles. (no site, as ilustrações estão em trabalho - publicações)
Aqui tem um texto sobre o assunto.

quarta-feira, 25 de março de 2009



Seis propostas para o próximo milênio
Ítalo Calvino


Leveza
Servi-me de Cavalcanti para exemplificar a leveza em pelo menos três acepções distintas:
1) Um despojamento da linguagem por meio do qual os significados são canalizados por um tecido verbal quase imponderável até assumirem essa mesma rarefeita consistência.
2) A narração de um raciocínio ou de um processo psicológico no qual interferem elementos sutis e imperceptíveis, ou qualquer descrição que comporte um alto grau de abstração.
3) Uma imagem figurativa da leveza que assume um valor emblemático, como, na história de Boccaccio, Cavalcanti volteando com suas pernas esguias por sobre a pedra tumular. (p.28, p.29 e p.30)

Rapidez
“A narrativa é um cavalo, um meio de transporte cujo tipo de andadura, trote ou galope, depende do percurso a ser executado, embora a velocidade de que se fala aqui seja uma velocidade mental”. (p.53)

Exatidão
“Para mim, exatidão quer dizer principalmente três coisas: 1) um projeto de obra bem definido e calculado; 2) a evocação de imagens visuais nítidas, incisivas, memoráveis: 3) uma linguagem que seja a mais precisa possível como léxico e em sua capacidade de traduzir as nuanças do pensamento e da imaginação”.(p.71 e 72 )

Visibilidade
“Se incluí a visibilidade em minha lista de valores a preservar foi para advertir que estamos correndo o perigo de perder uma faculdade humana fundamental: a capacidade de pôr em foco visões de olhos fechados, de fazer brotar cores e formas de um alinhamento de caracteres alfabéticos negros sobre uma página branca, de pensar por imagens”. (p.107 e 108)

Multiplicidade
“Alguém poderia objetar que quanto mais a obra tende para a multiplicidade dos possíveis mais se distancia daquele unicum que é o self de quem escreve, a sinceridade interior, a descoberta de sua própria verdade. Ao contrário, respondo, quem somos nós, quem é cada um de nós senão uma combinatória de experiências, de informações, de leituras, de imaginações? Cada vida é uma enciclopédia, uma biblioteca, um inventário de objetos, uma amostragem de estilos, onde tudo pode ser continuamente mexido, reordenado de todas as maneiras possíveis”. (p.138)



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RESENHA: SEIS PROPOSTAS PARA O NOVO MILÊNIO: LIÇÕES AMERICANAS
CALVINO, Italo. Seis Propostas para o Próximo Milênio: Lições Americanas.
Trad.: Ivo Cardoso. São Paulo: Companhia das letras, 1990.



Em Seis Propostas para o Próximo Milênio, Calvino reúne cinco conferências através das quais propunha a perenidade de determinados valores literários para o próximo milênio, listadas pelo autor na seguinte ordem: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade e consistência. Contudo, o autor faleceu antes de escrever a última conferência.

A leveza, na concepção de Calvino, está relacionada a elementos diversos que permeiam textos literários, capazes de fazer com que o leitor vivencie esta sensação. O autor faz considerações sobre a construção textual sinalizando como sendo esses elementos a corrente filosófica, o ponto de vista, as ferramentas lingüísticas peculiares, a definição da idéia e a precisão na linguagem, visando estimular, em especial, a percepção.

A leveza se manifesta no texto de Calvino através de metáforas que transmitem essa sugestão verbal. Assim, faz referências a autores diversos, como Cavalcanti e Ovídio, em busca de exemplos que façam com que o leitor imagine o quão necessário é a experiência de reunir tais instrumentos numa combinação capaz de alcançar a volatilidade da leveza, descrevendo-a como algo mais leve que uma nuvem, que uma pulverulência, uma espécie de campo de impulsos magnéticos (p. 27). Calvino ressalta ainda que para vivenciar a leveza é necessário conhecer a experiência do peso, saber o seu valor.

Cita três acepções diferentes para definir a leveza: a primeira seria um despojamento da linguagem que pudesse permitir aos significados uma consistência pouco densa. A segunda se relaciona com a narração de um raciocínio atravessado por itens que assegurem a abstração e, por fim, a formação de figuras visuais leves.

A Rapidez, tema da segunda conferência, questiona a duração, a conveniência em poupar o leitor de detalhes determinados em favor do ritmo, da lógica na narrativa. Calvino vê a rapidez como o nó de uma rede de correlações invisíveis (p. 47), a ferramenta essencial para a continuidade da narrativa, fazendo com que o leitor transite num campo de forças que envolve um liame verbal (que pode ser uma palavra que dê idéia de continuidade) e um liame narrativo (elemento que sustenta a narrativa numa relação lógica de causa e efeito).

Existe aqui uma preocupação com a estrutura e o estilo a fim de alcançar força sugestiva, além da busca constante pela melhor maneira de trabalhar a relatividade do tempo, ora dilatado, ora contraído, ora linear, ora descontínuo. Convém analisar a relação entre velocidade física e velocidade mental em que o leitor imagina a estória.

A terceira conferência discute a Exatidão, que, como descreve o autor, possui três pontos de atenção: (1) a boa definição de um projeto de obra, (2) a formação de idéias visuais nítidas e (3) uma linguagem precisa, capaz de traduzir detalhes do imaginário. A exatidão seria a qualidade de empregar a linguagem a fim de aproximar-se das coisas de modo a transparecer o conteúdo que as coisas transmitem sem o recurso das palavras.

A Visibilidade está relacionada à processos imaginativos, à qualidade de expressar imagens, uma vez que, para Calvino, a imagem antecede o texto no processo criativo devido ao seu caráter polissêmico. Cabe ao escritor ordenar tais significados de modo a deixar translúcida a sua intenção e as possibilidades diversas de leituras que o texto carrega consigo. Trata-se de lançar um olhar sobre a relação entre a análise direta do mundo, o universo ilusório e o mundo simbólico transmitido pela cultura e o curso abstração - condensação - interiorização de uma experiência sensível.

A Multiplicidade, tema da última conferência, é apresentada como uma sugestão de observar o romance enquanto suporte enciclopédico, um hiper-romance no qual o conhecimento pode ser abordado como numa rede que enlaça fatos, saberes e sistemas reciprocamente condicionantes, fazendo do texto multíplice o espaço de diálogo entre vozes dissidentes, sujeitos particulares e visões de mundo divergentes num processo constante de reconfiguração, no qual o conhecimento deve ser pensado de maneira permeável e expansiva.

FONTE: http://www.uesc.br/icer/resenhas/alineresenhacalvino.htm


terça-feira, 24 de março de 2009

"Sonhos" de Akira Kurosawa


Akira Kurosawa (1910-1998) se notabilizou em sua carreira como um dos mais brilhantes diretores da história do cinema.
Kurosawa foi um cineasta japonês, um dos maiores mestres do cinema contemporâneo. Sua obra se caracteriza pela reconstituição da história e costumes do Japão medieval, pela intensidade dramática e beleza plástica de seus filmes.
Dentro de sua vasta filmografia, destaco o filme “Sonhos” (1990).
“Sonhos” é composto por oito episódios em que sempre começam com os dizeres em japonês: ”konna yume wo mita” (vi um sonho assim), que mostra um Kurosawa questionando as grandes preocupações da psique humana que nos atormentam: a morte, a culpa, a vida humana posta em perigo por usinas atômicas, a preservação da natureza, o papel das artes na nossa vida, os ditames impostos pela sociedade de consumo.
São as preocupações de todo ser humano, mas apenas artistas de sensibilidade como Kurosawa conseguem deixar sua mensagem em forma de arte. O cineasta escreve ou como artista plástico, pinta poesia na tela: envolvente pelas imagens, pela linguagem e personagens metafóricas.
Como na poesia, ao final dos versos, faz do bem estar do homem em sociedade a rima comum.
No quinto conto, "Corvos", um jovem pintor, ao observar as pinturas de Van Gogh, entra dentro dos quadros e se encontra com o pintor, que indaga por qual razão ele não está pintando se a paisagem é incrível, pois isto o motiva a pintar de forma frenética.
Esse episódio está no link a seguir:

segunda-feira, 23 de março de 2009

A Complicada Arte de Ver.


Procurando informações sobre a Literatura e as Artes Plásticas, me deparei com esse texto.
Achei excelente como o autor fala "dos olhos que enxergam" e "dos olhos dos olhos que realmente enxergam".É fascinante tirar a venda dos próprios olhos e enxergar além da visão natural! E isso a gente faz com a literatura.
Quando você ler o texto irá entender essa minha expressão.


"A Complicada Arte de Ver".

Ela entrou, deitou-se no divã e disse: "Acho que estou ficando louca". Eu fiquei em silêncio aguardando que ela me revelasse os sinais da sua loucura. "Um dos meus prazeres é cozinhar. Vou para a cozinha, corto as cebolas, os tomates, os pimentões - é uma alegria!

Entretanto, faz uns dias, eu fui para a cozinha para fazer aquilo que já fizera centenas de vezes: cortar cebolas. Ato banal sem surpresas. Mas, cortada a cebola, eu olhei para ela e tive um susto. Percebi que nunca havia visto uma cebola. Aqueles anéis perfeitamente ajustados, a luz se refletindo neles: tive a impressão de estar vendo a rosácea de um vitral de catedral gótica.

De repente, a cebola, de objeto a ser comido, se transformou em obra de arte para ser vista! E o pior é que o mesmo aconteceu quando cortei os tomates, os pimentões... Agora, tudo o que vejo me causa espanto."Ela se calou, esperando o meu diagnóstico.

Eu me levantei, fui à estante de livros e de lá retirei as "Odes Elementales", de Pablo Neruda. Procurei a "Ode à Cebola" e lhe disse: "Essa perturbação ocular que a acometeu é comum entre os poetas. Veja o que Neruda disse de uma cebola igual àquela que lhe causou assombro: 'Rosa de água com escamas de cristal'. Não, você não está louca. Você ganhou olhos de poeta... Os poetas ensinam a ver".

Ver é muito complicado. Isso é estranho porque os olhos, de todos os órgãos dos sentidos, são os de mais fácil compreensão científica. A sua física é idêntica à física óptica de uma máquina fotográfica: o objeto do lado de fora aparece refletido do lado de dentro. Mas existe algo na visão que não pertence à física.

William Blake sabia disso e afirmou: "A árvore que o sábio vê não é a mesma árvore que o tolo vê". Sei disso por experiência própria. Quando vejo os ipês floridos, sinto-me como Moisés diante da sarça ardente: ali está uma epifania do sagrado.Mas uma mulher que vivia perto da minha casa decretou a morte de um ipê que florescia à frente de sua casa porque ele sujava o chão, dava muito trabalho para a sua vassoura. Seus olhos não viam a beleza. Só viam o lixo.

Adélia Prado disse: "Deus de vez em quando me tira a poesia. Olho para uma pedra e vejo uma pedra". Drummond viu uma pedra e não viu uma pedra. A pedra que ele viu virou poema.Há muitas pessoas de visão perfeita que nada vêem.

"Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. Não basta abrir a janela para ver os campos e os rios", escreveu Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa. O ato de ver não é coisa natural. Precisa ser aprendido.

Nietzsche sabia disso e afirmou que a primeira tarefa da educação é ensinar a ver. O zen-budismo concorda, e toda a sua espiritualidade é uma busca da experiência chamada "satori", a abertura do "terceiro olho". Não sei se Cummings se inspirava no zen-budismo, mas o fato é que escreveu: "Agora os ouvidos dos meus ouvidos acordaram e agora os olhos dos meus olhos se abriram".
Há um poema no Novo Testamento que relata a caminhada de dois discípulos na companhia de Jesus ressuscitado. Mas eles não o reconheciam. Reconheceram-no subitamente: ao partir do pão, "seus olhos se abriram".
Vinicius de Moraes adota o mesmo mote em "Operário em Construção": "De forma que, certo dia, à mesa ao cortar o pão, o operário foi tomado de uma súbita emoção, ao constatar assombrado que tudo naquela mesa - garrafa, prato, facão - era ele quem fazia. Ele, um humilde operário, um operário em construção".
A diferença se encontra no lugar onde os olhos são guardados. Se os olhos estão na caixa de ferramentas, eles são apenas ferramentas que usamos por sua função prática. Com eles vemos objetos, sinais luminosos, nomes de ruas - e ajustamos a nossa ação. O ver se subordina ao fazer. Isso é necessário. Mas é muito pobre.
Os olhos não gozam... Mas, quando os olhos estão na caixa dos brinquedos, eles se transformam em órgãos de prazer: brincam com o que vêem, olham pelo prazer de olhar, querem fazer amor com o mundo.
Os olhos que moram na caixa de ferramentas são os olhos dos adultos. Os olhos que moram na caixa dos brinquedos, das crianças. Para ter olhos brincalhões, é preciso ter as crianças por nossas mestras.

Alberto Caeiro disse haver aprendido a arte de ver com um menininho, Jesus Cristo fugido do céu, tornado outra vez criança, eternamente: "A mim, ensinou-me tudo. Ensinou-me a olhar para as coisas. Aponta-me todas as coisas que há nas flores. Mostra-me como as pedras são engraçadas quando a gente as têm na mão e olha devagar para elas".

Por isso - porque eu acho que a primeira função da educação é ensinar a ver - eu gostaria de sugerir que se criasse um novo tipo de professor, um professor que nada teria a ensinar, mas que se dedicaria a apontar os assombros que crescem nos desvãos da banalidade cotidiana. Como o Jesus menino do poema de Caeiro. Sua missão seria partejar "olhos vagabundos"...

Rubem Alves – Educador e escritor.
Texto originalmente publicado no caderno “Sinapse”, jornal “Folha de S. Paulo”, publicado em 26/10/2004.

sábado, 21 de março de 2009

Literatura e Artes Plásticas

Bom, eu não aguento. Olha eu aqui outra vez!
Antes, tenho que deixar registrado que a aula de hoje foi ótima (nada contra as outras). A colaboração do Ivan Justen Santana foi muito válida para a oficina, obrigada!
Mais uma coisa: um site bacana de artes para imagens de boa qualidade é o Mark Harden's Artchive (lá, clique na monalisa e é só escolher o nome do artista no lado esquerdo da tela).
Finalmente, o motivo da postagem: Patrick Corillon.
É um artista contemporâneo que possui vários trabalhos interessantes que envolvem literatura e artes plásticas, pois ele cria personagens e desenvolve todo um trabalho artístico misturando ficção e realidade. Infelizmente, não se encontra muita coisa na net em português sobre a sua produção, mas eu tenho uma amostra:

Quando deixou sua casa, aos dezoito anos, Oskar Serti (Budapeste, 1881 - Amsterdam, 1959) estabeleceu-se em um
sótão vizinho ao do poeta Virgil Bànek. Apesar de não poder distinguir as palavras do poeta de onde estava, Serti era capaz de, apoiando as costas contra a parede que os separava, sentir através do corpo o ressoar dos versos que Virgil Bànek, encostado do outro lado, recitava a cada noite numa voz tenebrosa.
Após tornar-se escritor, em 1902, Oskar Serti lembrou-se desse episódio e organizou suas primeiras leituras em público em apartamentos, onde pedia que seus convidados se apoiassem contra a parede e depois fechava-se sozinho em uma sala adjacente. Então, começava seus textos num tom grave, recostando-se contra a parede que o separava de seus ouvintes, que deveriam vibrar com o seu discurso.
Infelizmente, a tentativa de Serti foi incompreendida, e muitas pessoas o acusaram de temer expor-se, e seus textos, diante do público.
Em março de 1955, depois de um longo exílio, Serti retornou a seu país coberto
de honra.
Durante uma visita às paredes de suas primeiras leituras, demorou-se em frente às profundas rachaduras que ali tinham surgido. Diante de uma plateia composta principalment
e por aquelas pessoas que tanto o haviam criticado, Serti minimizou o papel do famoso terremoto de 1954 e, não sem lirismo, justificou a origem daquelas fendas pelo fato de que seus textos tinham finalmente conseguido vencer a incompreensão em que haviam ficado tanto tempo confinados.

Ao lado: reconstituição de uma das mais notáveis rachaduras encontradas nas paredes do apartamento visitado por Oskar Serti em 1902.

(imagem: La Lézarde, 1992 - alumínio).

http://www.corillon.org

É isso,

abraços.

quarta-feira, 18 de março de 2009

Professor convidado




Ivan Justen Santana
Curitibano, nascido em 1973.
Licenciado em Língua e Literatura Inglesa pela UFPR.
Mestre em Letras pela USP.
Atuou na FCC, como auxiliar cultural, durante 13 anos.
Ministrou cursos de literatura em cursos de extensão para universitários.
Trabalha como editor na Organização Educacional Expoente.
Poeta e tradutor, mantém um blog desde 200 http://ossurtado.blogspot.com

***

A pretensão é ler e interpretar dois poemas que versam sobre as relações entre poesia e artes plásticas: Os faróis, de Charles Baudelaire (1821-1867), e Encantadora de serpentes, de Sylvia Plath (1923-1963).

O poema de Baudelaire menciona oito grandes mestres das artes plásticas, caracterizando seus estilos e obras (Rubens, Da Vinci, Rembrandt, Michelângelo, Puget, Watteau, Goya e Delacroix).

O poema de Sylvia Plath foi elaborado inspirado numa pintura de Henri Rousseau (La Charmeuse de serpent - A encantadora de serpente - 1907).

Os dois poemas serão lidos no original e em tradução, e a interpretação vai incluir observações gerais sobre poesia e artes plásticas, e instigações para diálogos sobre tudo que se julgar pertinente.

É intenção do convidado apresentar amostras de obras dos referidos mestres, e uma reprodução do quadro de Henri Rousseau, para ilustrar a interpretação e os diálogos.

A CAUSA SECRETA


de Machado de Assis


Garcia, em pé, mirava e estalava as unhas; Fortunato, na cadeira de balanço, olhava para o teto; Maria Luísa, perto da janela, concluía um trabalho de agulha. Havia já cinco minutos que nenhum deles dizia nada. Tinham falado do dia, que estivera excelente, - de Catumbi, onde morava o casal Fortunato, e de uma casa de saúde, que adiante se explicará. Como os três personagens aqui presentes estão agora mortos e enterrados, tempo é de contar a história sem rebuço.
Tinham falado também de outra coisa, além daquelas três, coisa tão feia e grave, que não lhes deixou muito gosto para tratar do dia, do bairro e da casa de saúde. Toda a conversação a este respeito foi constrangida. Agora mesmo, os dedos de Maria Luísa parecem ainda trêmulos, ao passo que há no rosto de Garcia uma expressão de severidade, que lhe não é habitual. Em verdade, o que se passou foi de tal natureza, que para fazê-lo entender é preciso remontar à origem da situação.
Garcia tinha-se formado em medicina, no ano anterior, 1861. No de 1860, estando ainda na Escola, encontrou-se com Fortunato, pela primeira vez, à porta da Santa Casa; entrava, quando o outro saía. Fez-lhe impressão a figura; mas, ainda assim, tê-la-ia esquecido, se não fosse o segundo encontro, poucos dias depois. Morava na rua de D. Manoel. Uma de suas raras distrações era ir ao teatro de S. Januário, que ficava perto, entre essa rua e a praia; ia uma ou duas vezes por mês, e nunca achava acima de quarenta pessoas. Só os mais intrépidos ousavam estender os passos até aquele recanto da cidade. Uma noite, estando nas cadeiras, apareceu ali Fortunato, e sentou-se ao pé dele.
A peça era um dramalhão, cosido a facadas, ouriçado de imprecações e remorsos; mas Fortunato ouvia-a com singular interesse. Nos lances dolorosos, a atenção dele redobrava, os olhos iam avidamente de um personagem a outro, a tal ponto que o estudante suspeitou haver na peça reminiscências pessoais do vizinho. No fim do drama, veio uma farsa; mas Fortunato não esperou por ela e saiu; Garcia saiu atrás dele. Fortunato foi pelo beco do Cotovelo, rua de S. José, até o largo da Carioca. Ia devagar, cabisbaixo, parando às vezes, para dar uma bengalada em algum cão que dormia; o cão ficava ganindo e ele ia andando. No largo da Carioca entrou num tílburi, e seguiu para os lados da praça da Constituição. Garcia voltou para casa sem saber mais nada.
Decorreram algumas semanas. Uma noite, eram nove horas, estava em casa, quando ouviu rumor de vozes na escada; desceu logo do sótão, onde morava, ao primeiro andar, onde vivia um empregado do arsenal de guerra. Era este que alguns homens conduziam, escada acima, ensangüentado. O preto que o servia acudiu a abrir a porta; o homem gemia, as vozes eram confusas, a luz pouca. Deposto o ferido na cama, Garcia disse que era preciso chamar um médico.
- Já aí vem um, acudiu alguém.
Garcia olhou: era o próprio homem da Santa Casa e do teatro. Imaginou que seria parente ou amigo do ferido; mas rejeitou a suposição, desde que lhe ouvira perguntar se este tinha família ou pessoa próxima. Disse-lhe o preto que não, e ele assumiu a direção do serviço, pediu às pessoas estranhas que se retirassem, pagou aos carregadores, e deu as primeiras ordens. Sabendo que o Garcia era vizinho e estudante de medicina pediu-lhe que ficasse para ajudar o médico. Em seguida contou o que se passara.
- Foi uma malta de capoeiras. Eu vinha do quartel de Moura, onde fui visitar um primo, quando ouvi um barulho muito grande, e logo depois um ajuntamento. Parece que eles feriram também a um sujeito que passava, e que entrou por um daqueles becos; mas eu só vi a este senhor, que atravessava a rua no momento em que um dos capoeiras, roçando por ele, meteu-lhe o punhal. Não caiu logo; disse onde morava e, como era a dois passos, achei melhor trazê-lo.
- Conhecia-o antes? perguntou Garcia.
- Não, nunca o vi. Quem é?
- É um bom homem, empregado no arsenal de guerra. Chama-se Gouvêa.
- Não sei quem é.
Médico e subdelegado vieram daí a pouco; fez-se o curativo, e tomaram-se as informações. O desconhecido declarou chamar-se Fortunato Gomes da Silveira, ser capitalista, solteiro, morador em Catumbi. A ferida foi reconhecida grave. Durante o curativo ajudado pelo estudante, Fortunato serviu de criado, segurando a bacia, a vela, os panos, sem perturbar nada, olhando friamente para o ferido, que gemia muito. No fim, entendeu-se particularmente com o médico, acompanhou-o até o patamar da escada, e reiterou ao subdelegado a declaração de estar pronto a auxiliar as pesquisas da polícia. Os dois saíram, ele e o estudante ficaram no quarto.
Garcia estava atônito. Olhou para ele, viu-o sentar-se tranqüilamente, estirar as pernas, meter as mãos nas algibeiras das calças, e fitar os olhos no ferido. Os olhos eram claros, cor de chumbo, moviam-se devagar, e tinham a expressão dura, seca e fria. Cara magra e pálida; uma tira estreita de barba, por baixo do queixo, e de uma têmpora a outra, curta, ruiva e rara. Teria quarenta anos. De quando em quando, voltava-se para o estudante, e perguntava alguma coisa acerca do ferido; mas tornava logo a olhar para ele, enquanto o rapaz lhe dava a resposta. A sensação que o estudante recebia era de repulsa ao mesmo tempo que de curiosidade; não podia negar que estava assistindo a um ato de rara dedicação, e se era desinteressado como parecia, não havia mais que aceitar o coração humano como um poço de mistérios.
Fortunato saiu pouco antes de uma hora; voltou nos dias seguintes, mas a cura fez-se depressa, e, antes de concluída, desapareceu sem dizer ao obsequiado onde morava. Foi o estudante que lhe deu as indicações do nome, rua e número.
- Vou agradecer-lhe a esmola que me fez, logo que possa sair, disse o convalescente.
Correu a Catumbi daí a seis dias. Fortunato recebeu-o constrangido, ouviu impaciente as palavras de agradecimento, deu-lhe uma resposta enfastiada e acabou batendo com as borlas do chambre no joelho. Gouvêa, defronte dele, sentado e calado, alisava o chapéu com os dedos, levantando os olhos de quando em quando, sem achar mais nada que dizer. No fim de dez minutos, pediu licença para sair, e saiu.
- Cuidado com os capoeiras! disse-lhe o dono da casa, rindo-se.
O pobre-diabo saiu de lá mortificado, humilhado, mastigando a custo o desdém, forcejando por esquecê-lo, explicá-lo ou perdoá-lo, para que no coração só ficasse a memória do benefício; mas o esforço era vão. O ressentimento, hóspede novo e exclusivo, entrou e pôs fora o benefício, de tal modo que o desgraçado não teve mais que trepar à cabeça e refugiar-se ali como uma simples idéia. Foi assim que o próprio benfeitor insinuou a este homem o sentimento da ingratidão.
Tudo isso assombrou o Garcia. Este moço possuía, em gérmen, a faculdade de decifrar os homens, de decompor os caracteres, tinha o amor da análise, e sentia o regalo, que dizia ser supremo, de penetrar muitas camadas morais, até apalpar o segredo de um organismo. Picado de curiosidade, lembrou-se de ir ter com o homem de Catumbi, mas advertiu que nem recebera dele o oferecimento formal da casa. Quando menos, era-lhe preciso um pretexto, e não achou nenhum.
Tempos depois, estando já formado e morando na rua de Matacavalos, perto da do Conde, encontrou Fortunato em uma gôndola, encontrou-o ainda outras vezes, e a freqüência trouxe a familiaridade. Um dia Fortunato convidou-o a ir visitá-lo ali perto, em Catumbi.
- Sabe que estou casado?
- Não sabia.
- Casei-me há quatro meses, podia dizer quatro dias. Vá jantar conosco domingo.
- Domingo?
- Não esteja forjando desculpas; não admito desculpas. Vá domingo.
Garcia foi lá domingo. Fortunato deu-lhe um bom jantar, bons charutos e boa palestra, em companhia da senhora, que era interessante. A figura dele não mudara; os olhos eram as mesmas chapas de estanho, duras e frias; as outras feições não eram mais atraentes que dantes. Os obséquios, porém, se não resgatavam a natureza, davam alguma compensação, e não era pouco. Maria Luísa é que possuía ambos os feitiços, pessoa e modos. Era esbelta, airosa, olhos meigos e submissos; tinha vinte e cinco anos e parecia não passar de dezenove. Garcia, à segunda vez que lá foi, percebeu que entre eles havia alguma dissonância de caracteres, pouca ou nenhuma afinidade moral, e da parte da mulher para com o marido uns modos que transcendiam o respeito e confinavam na resignação e no temor. Um dia, estando os três juntos, perguntou Garcia a Maria Luísa se tivera notícia das circunstâncias em que ele conhecera o marido.
- Não, respondeu a moça.
- Vai ouvir uma ação bonita.
- Não vale a pena, interrompeu Fortunato.
- A senhora vai ver se vale a pena, insistiu o médico.
Contou o caso da rua de D. Manoel. A moça ouviu-o espantada. Insensivelmente estendeu a mão e apertou o pulso ao marido, risonha e agradecida, como se acabasse de descobrir-lhe o coração. Fortunato sacudia os ombros, mas não ouvia com indiferença. No fim contou ele próprio a visita que o ferido lhe fez, com todos os pormenores da figura, dos gestos, das palavras atadas, dos silêncios, em suma, um estúrdio. E ria muito ao contá-la. Não era o riso da dobrez. A dobrez é evasiva e oblíqua; o riso dele era jovial e franco.
" Singular homem!" pensou Garcia.
Maria Luísa ficou desconsolada com a zombaria do marido; mas o médico restituiu-lhe a satisfação anterior, voltando a referir a dedicação deste e as suas raras qualidades de enfermeiro; tão bom enfermeiro, concluiu ele, que, se algum dia fundar uma casa de saúde, irei convidá-lo.
- Valeu? perguntou Fortunato.
- Valeu o quê?
- Vamos fundar uma casa de saúde?
- Não valeu nada; estou brincando.
- Podia-se fazer alguma coisa; e para o senhor, que começa a clínica, acho que seria bem bom. Tenho justamente uma casa que vai vagar, e serve.
Garcia recusou nesse e no dia seguinte; mas a idéia tinha-se metido na cabeça ao outro, e não foi possível recuar mais. Na verdade, era uma boa estréia para ele, e podia vir a ser um bom negócio para ambos. Aceitou finalmente, daí a dias, e foi uma desilusão para Maria Luísa. Criatura nervosa e frágil, padecia só com a idéia de que o marido tivesse de viver em contato com enfermidades humanas, mas não ousou opor-se-lhe, e curvou a cabeça. O plano fez-se e cumpriu-se depressa. Verdade é que Fortunato não curou de mais nada, nem então, nem depois. Aberta a casa, foi ele o próprio administrador e chefe de enfermeiros, examinava tudo, ordenava tudo, compras e caldos, drogas e contas.
Garcia pôde então observar que a dedicação ao ferido da rua D. Manoel não era um caso fortuito, mas assentava na própria natureza deste homem. Via-o servir como nenhum dos fâmulos. Não recuava diante de nada, não conhecia moléstia aflitiva ou repelente, e estava sempre pronto para tudo, a qualquer hora do dia ou da noite. Toda a gente pasmava e aplaudia. Fortunato estudava, acompanhava as operações, e nenhum outro curava os cáusticos.
- Tenho muita fé nos cáusticos, dizia ele.
A comunhão dos interesses apertou os laços da intimidade. Garcia tornou-se familiar na casa; ali jantava quase todos os dias, ali observava a pessoa e a vida de Maria Luísa, cuja solidão moral era evidente. E a solidão como que lhe duplicava o encanto. Garcia começou a sentir que alguma coisa o agitava, quando ela aparecia, quando falava, quando trabalhava, calada, ao canto da janela, ou tocava ao piano umas músicas tristes. Manso e manso, entrou-lhe o amor no coração. Quando deu por ele, quis expeli-lo para que entre ele e Fortunato não houvesse outro laço que o da amizade; mas não pôde. Pôde apenas trancá-lo; Maria Luísa compreendeu ambas as coisas, a afeição e o silêncio, mas não se deu por achada.
No começo de outubro deu-se um incidente que desvendou ainda mais aos olhos do médico a situação da moça. Fortunato metera-se a estudar anatomia e fisiologia, e ocupava-se nas horas vagas em rasgar e envenenar gatos e cães. Como os guinchos dos animais atordoavam os doentes, mudou o laboratório para casa, e a mulher, compleição nervosa, teve de os sofrer. Um dia, porém, não podendo mais, foi ter com o médico e pediu-lhe que, como coisa sua, alcançasse do marido a cessação de tais experiências.
- Mas a senhora mesma...
Maria Luísa acudiu, sorrindo:
- Ele naturalmente achará que sou criança. O que eu queria é que o senhor, como médico, lhe dissesse que isso me faz mal; e creia que faz...
Garcia alcançou prontamente que o outro acabasse com tais estudos. Se os foi fazer em outra parte, ninguém o soube, mas pode ser que sim. Maria Luísa agradeceu ao médico, tanto por ela como pelos animais, que não podia ver padecer. Tossia de quando em quando; Garcia perguntou-lhe se tinha alguma coisa, ela respondeu que nada.
- Deixe ver o pulso.
- Não tenho nada.
Não deu o pulso, e retirou-se. Garcia ficou apreensivo. Cuidava, ao contrário, que ela podia ter alguma coisa, que era preciso observá-la e avisar o marido em tempo.
Dois dias depois, - exatamente o dia em que os vemos agora, - Garcia foi lá jantar. Na sala disseram-lhe que Fortunato estava no gabinete, e ele caminhou para ali; ia chegando à porta, no momento em que Maria Luísa saía aflita.
- Que é? perguntou-lhe.
- O rato! O rato! exclamou a moça sufocada e afastando-se.
Garcia lembrou-se que na véspera ouvira ao Fortunato queixar-se de um rato, que lhe levara um papel importante; mas estava longe de esperar o que viu. Viu Fortunato sentado à mesa, que havia no centro do gabinete, e sobre a qual pusera um prato com espírito de vinho. O líquido flamejava. Entre o polegar e o índice da mão esquerda segurava um barbante, de cuja ponta pendia o rato atado pela cauda. Na direita tinha uma tesoura. No momento em que o Garcia entrou, Fortunato cortava ao rato uma das patas; em seguida desceu o infeliz até a chama, rápido, para não matá-lo, e dispôs-se a fazer o mesmo à terceira, pois já lhe havia cortado a primeira. Garcia estacou horrorizado.
- Mate-o logo! disse-lhe.
- Já vai.
E com um sorriso único, reflexo de alma satisfeita, alguma coisa que traduzia a delícia íntima das sensações supremas, Fortunato cortou a terceira pata ao rato, e fez pela terceira vez o mesmo movimento até a chama. O miserável estorcia-se, guinchando, ensangüentado, chamuscado, e não acabava de morrer. Garcia desviou os olhos, depois voltou-os novamente, e estendeu a mão para impedir que o suplício continuasse, mas não chegou a fazê-lo, porque o diabo do homem impunha medo, com toda aquela serenidade radiosa da fisionomia. Faltava cortar a última pata; Fortunato cortou-a muito devagar, acompanhando a tesoura com os olhos; a pata caiu, e ele ficou olhando para o rato meio cadáver. Ao descê-lo pela quarta vez, até a chama, deu ainda mais rapidez ao gesto, para salvar, se pudesse, alguns farrapos de vida.
Garcia, defronte, conseguia dominar a repugnância do espetáculo para fixar a cara do homem. Nem raiva, nem ódio; tão-somente um vasto prazer, quieto e profundo, como daria a outro a audição de uma bela sonata ou a vista de uma estátua divina, alguma coisa parecida com a pura sensação estética. Pareceu-lhe, e era verdade, que Fortunato havia-o inteiramente esquecido. Isto posto, não estaria fingindo, e devia ser aquilo mesmo. A chama ia morrendo, o rato podia ser que tivesse ainda um resíduo de vida, sombra de sombra; Fortunato aproveitou-o para cortar-lhe o focinho e pela última vez chegar a carne ao fogo. Afinal deixou cair o cadáver no prato, e arredou de si toda essa mistura de chamusco e sangue.
Ao levantar-se deu com o médico e teve um sobressalto. Então, mostrou-se enraivecido contra o animal, que lhe comera o papel; mas a cólera evidentemente era fingida.
"Castiga sem raiva", pensou o médico, "pela necessidade de achar uma sensação de prazer, que só a dor alheia lhe pode dar: é o segredo deste homem".
Fortunato encareceu a importância do papel, a perda que lhe trazia, perda de tempo, é certo, mas o tempo agora era-lhe preciosíssimo. Garcia ouvia só, sem dizer nada, nem lhe dar crédito. Relembrava os atos dele, graves e leves, achava a mesma explicação para todos. Era a mesma troca das teclas da sensibilidade, um diletantismo sui generis, uma redução de Calígula.
Quando Maria Luísa voltou ao gabinete, daí a pouco, o marido foi ter com ela, rindo, pegou-lhe nas mãos e falou-lhe mansamente:
- Fracalhona!
E voltando-se para o médico:
- Há de crer que quase desmaiou?
Maria Luísa defendeu-se a medo, disse que era nervosa e mulher; depois foi sentar-se à janela com as suas lãs e agulhas, e os dedos ainda trêmulos, tal qual a vimos no começo desta história. Hão de lembrar-se que, depois de terem falado de outras coisas, ficaram calados os três, o marido sentado e olhando para o teto, o médico estalando as unhas. Pouco depois foram jantar; mas o jantar não foi alegre. Maria Luísa cismava e tossia; o médico indagava de si mesmo se ela não estaria exposta a algum excesso na companhia de tal homem. Era apenas possível; mas o amor trocou-lhe a possibilidade em certeza; tremeu por ela e cuidou de os vigiar.
Ela tossia, tossia, e não se passou muito tempo que a moléstia não tirasse a máscara. Era a tísica, velha dama insaciável, que chupa a vida toda, até deixar um bagaço de ossos. Fortunato recebeu a notícia como um golpe; amava deveras a mulher, a seu modo, estava acostumado com ela, custava-lhe perdê-la. Não poupou esforços, médicos, remédios, ares, todos os recursos e todos os paliativos. Mas foi tudo vão. A doença era mortal.
Nos últimos dias, em presença dos tormentos supremos da moça, a índole do marido subjugou qualquer outra afeição. Não a deixou mais; fitou o olho baço e frio naquela decomposição lenta e dolorosa da vida, bebeu uma a uma as aflições da bela criatura, agora magra e transparente, devorada de febre e minada de morte. Egoísmo aspérrimo, faminto de sensações, não lhe perdoou um só minuto de agonia, nem lhos pagou com uma só lágrima, pública ou íntima. Só quando ela expirou, é que ele ficou aturdido. Voltando a si, viu que estava outra vez só.
De noite, indo repousar uma parenta de Maria Luísa, que a ajudara a morrer, ficaram na sala Fortunato e Garcia, velando o cadáver, ambos pensativos; mas o próprio marido estava fatigado, o médico disse-lhe que repousasse um pouco.
- Vá descansar, passe pelo sono uma hora ou duas: eu irei depois.
Fortunato saiu, foi deitar-se no sofá da saleta contígua, e adormeceu logo. Vinte minutos depois acordou, quis dormir outra vez, cochilou alguns minutos, até que se levantou e voltou à sala. Caminhava nas pontas dos pés para não acordar a parenta, que dormia perto. Chegando à porta, estacou assombrado.
Garcia tinha-se chegado ao cadáver, levantara o lenço e contemplara por alguns instantes as feições defuntas. Depois, como se a morte espiritualizasse tudo, inclinou-se e beijou-a na testa. Foi nesse momento que Fortunato chegou à porta. Estacou assombrado; não podia ser o beijo da amizade, podia ser o epílogo de um livro adúltero. Não tinha ciúmes, note-se; a natureza compô-lo de maneira que lhe não deu ciúmes nem inveja, mas dera-lhe vaidade, que não é menos cativa ao ressentimento.
Olhou assombrado, mordendo os beiços.
Entretanto, Garcia inclinou-se ainda para beijar outra vez o cadáver; mas então não pôde mais. O beijo rebentou em soluços, e os olhos não puderam conter as lágrimas, que vieram em borbotões, lágrimas de amor calado, e irremediável desespero. Fortunato, à porta, onde ficara, saboreou tranqüilo essa explosão de dor moral que foi longa, muito longa, deliciosamente longa.

Fonte: Várias Histórias - Machado de Assis - W. M. Jackson Inc Editores - 1946.

sábado, 14 de março de 2009

Psicanálise e Arte

Achei o texto interessante para uma reflexão, já que lemos a respeito da psicanálise no conto de Hoffmann.
Abraço a todos.

Mais um texto sobre psicanálise e o conto de Hoffmann

Trata-se de um estudo sobre uma crônica comparada ao texto de Freud referente ao conto "O Homem de Areia". Para ler o texto, clique aqui.
(Desculpem, mas não sei anexar arquivos no blog, por isso o link)
At.,
Valéria

quarta-feira, 11 de março de 2009

Mais um vídeo do Youtube, principalmente para quem se interessou pelo aspecto folclórico do conto "O Homem de Areia": - http://www.youtube.com/watch?v=UjgHbRrnjhU. Vale a pena dar uma olhada. Não há quem não se lembre de noites tremendo de medo embaixo das cobertas...


Bons sonhos para todos,
Monica

MANUAL DO CONTISTA

de Joseh Pereira, 1977 - Faculdade de Letras

Gênero Literário/ CONTO
Estrutura Básica

1. PRÓLOGO:
1.1 - Antes do Enredo, Opcional

2. ENREDO ( Propriamente Dito ):
2.1 - Causas:
2.1.1 - Início Dramático
2.2 - Desarranjos:
2.1.2 - Desenvolvimento ou Curso Dramático
2.3 - Acomodação Final

3. EPÍLOGO:
3.1 - Após o Enredo, Opcional

Esquema Analítico do Conto:

1. A Palavra
A) Sentido: caso, relato, narrativa, com a função de enumerar fatos ou detalhes, vinculando vários episódios que compõem uma intriga, i.é, uma situação dramática, conflituosa.
B) "Conto: cadeia de detalhes, com desenlace dramático, caso".

2. Histórico
A) Tipicamente literário, talvez, em Caim e Abel, o primeiro exemplar de conto, milhares de anos a.C., tendendo, às vezes, em suas vicissitudes históricas, à crônica e ao poema em prosa.
B) "Conto: já esteve próximo da crônica e do poema em prosa".

3. Conceito e Estrutura:
A) Conto, matriz da novela e do romance, apenas do prisma histórico e essencial: não são reversíveis, de uma a outra forma narrativa.
B) "Conto, matriz da novela e do romance, mas, conto é conto, novela é novela e romance é romance".

3.1 - Unidades ( Dramáticas ) de:

3.1.1 - Ação
A) Enredo [atos, ações, acontecimentos], no conto, circunscrito [rejeita digressões e extrapolações]: célula dramática.
B) "O enredo, no conto, rejeita qualquer digressão ou extrapolação".

3.1.2 - Espaço
A) Espaço: restrito, palco estreito em que ocorre a ação dramática [sem nenhum ou grandes deslocamentos, prejudiciais à intensidade dramática].
B) "Deslocamentos espaciais quebram a intensidade dramática".

3.1.3 - Tempo
A) Tempo: curto, breve e limitado, enquanto dura ou prepara a ação [passado e futuro, sinteticamente].
B) "Tempo: o suficiente para 'situar' o drama; sem passado nem futuro".

3.1.4 - Tom
A) No conto, tom: harmonia estrutural entre as partes da narrativa, por sua unidade de objetivo rumo à unidade de impressão.
B) "Do arranjo estrutural, a unidade de objetivo rumo à unidade de impressão".

3.2 - Personagem
A) Por exigência das unidades de ação, tempo, espaço e tom: número reduzido de personagens, tendentes à forma plana e estática, sem maior complexidade de caráter e pouca flexibilidade evolutiva.
B) "Poucas personagens, de caráter simples e pouco evolutivas".

3.3 - Estrutura
A) Estruturalmente [o conto]: objetivo, horizontal; breve história que é, nele as palavras hão de ser suficientes e necessárias; dado imaginativo subposto a dado observado; donde o realismo, a verossimilhança com a vida.
B) "Breve história: as palavras hão de ser suficientes e necessárias, não mais nem menos, com dado imaginativo sub-posto e verossímil".

3.4 - Linguagem:
A) Objetiva, admitidas metáforas de curto espectro, a linguagem, no conto: despida de abstração, solenidade e esoterismo [antes da intenção, a ação; da prolixidade, a concisão].
B) "Quando metáforas, de fácil alcance; linguagem sem qualquer abstração, solenidade e esoterismo".

3.4.1 - Diálogo Direto
A) Base expressiva do conto, o diálogo; primeiro, o diálogo direto: fala direta das personagens, representada, na escrita, por travessão ou aspas [predominante, no conto].
B) "Dos diálogos, base expressiva do conto, preferir o direto, com uso equilibrado possível do indireto, indireto livre e interior".

3.4.2 - Diálogo Indireto
A) Diálogo indireto: resumo, em forma narrativa, da fala das personagens [secundário; quando não vale a pena a transcrição direta].

3.4.3 - Diálogo Indireto Livre
A) Diálogo indireto livre: discreta inserção, no discurso indireto, da fala ou fragmentos da personagem [pouco freqüente, no conto].

3.4.4 - Diálogo Interior ou Monólogo
A) Diálogo interior [monólogo]: fala da personagem consigo mesma [estruturalmente perfeito, no conto; raro, formal, complexo].

3.4.5 - Narração
A) Narração [quase ausente, no conto]: relata acontecimentos ou fatos [a ação, o movimento e o transcorrer do tempo].
B) "No conto: Narração, nas sínteses; descrição, ligeira, s/retrato acabado e dissertação, discretíssima".

3.4.6 - Descrição
A) Sem a preocupação, no conto, com o retrato acabado, a descrição caracteriza, tipifica um objeto ou personagem, em sua imobilidade no tempo e no espaço [ligeiramente].

3.4.7 - Dissertação
A) Como 'exposição de idéias e pensamentos' no conto a dissertação, apenas em doses homeopáticas, ou implícitas e fundidas nos demais recursos de linguagem.

3.5 - Trama ou Enredo
A) Trama [intriga, enredo]: ritmo linear, objetivo e natural da sucessão de fatos, carregado [ou carregando-se, pouco a pouco] de um enigma, mistério ou nó dramático; jogo narrativo ou fio condutor rumo ao desenlace do enigma, à precipitação do clímax dramático, com a surpresa ante à 'novidade' desentranhada, a semente de meditação e o pasmo.
B) "Dirigir a trama rumo a um clímax, donde a supresa pela 'novidade' desentranhada, a semente de meditação e o pasmo".

3.6 - Pontos de Vista ou Focos Narrativos
A) Focos narrativos:
1o.) ESCRITOR/NARRADOR ONISCIENTE [narrador "vê" e "sabe" tudo; distância escritor-narrador diminuída ao extremo, quase uma fusão, enquanto a distância narrador-história, aumentada ao extremo]. 2o.) PRIMEIRA PESSOA NARRATIVA [horizonte narrativo limitado pela unilateralidade da visão, compensado com a verossimilhança e intensidade dramática maiores]: a) Personagem Central [distância máxima do escritor; a protagonista narra sua história, reportando-se às demais personagens na medida de sua participação]; b) Personagem Secundária [fora do núcleo dramático; menor a distância ao autor e maior em relação ao leitor, a personagem narrra uma história da qual é figurante]; c) Narrador Observador ou Testemunha [mais perto do autor e mais longe do leitor, e também da história, a testemunha narra como simples espectador]; narrador ingênuo: quando não compreende claramente o que presencia. 3o.) TERCEIRA PESSOA NARRATIVA [bem próxima da onisciência, uma espécie de disfarce do autor; este, sem a exclusão do privilégio de enquadrar a história em sua óptica pessoal, delega-lhe poderes para narrar]: é Protagonista, Personagem Secundária ou Observador.

B) "Dos focos narrativos, de cada um, há vantagens e desvantagens; e a narração é mais direta, 'viva' e 'presente' quanto menor a distância psicológica entre narrador e história narrada, o contrário, ganha em detalhes, perdendo em intensidade".

3.7 - Presentividade
A) A primeira pessoa ajuda a unidade da narrativa, concentra seus efeitos, torna mais plausíveis e 'presentes' os fatos narrados, mesmo com os verbos no pretérito [presentividade: um requisito essencial à realização do conto].

3.8 - Tipos de Conto:
A) Prevalência de um ou outro componente, em um e outro conto: tipos de conto.
B) "Dos tipos de conto, há os mais nítidos, outros, mesclados; mais freqüentes, os de idéias".

3.8.1 - De Ação
A) Menos importante, porém, mais freqüente, destinado ao gozo lúdico e de fuga, e tendo como exemplos os contos policiais e de mistérios, conto de ação: narrativa para entreter e divertir, dentro de sua escala aventuresca e fantástica.

3.8.2 - De Personagem
A) Sendo o conto narrativa de pouco espaço à descrição, conto de personagem, centrado no caráter 'vivo' da personagem, é menos comum [Ex.: "Feliz Aniversário", Clarisse Lispector].

3.8.3 - De Ambiente ou Atmosfera
A) Conto de cenário ou atmosfera: tônica dramática transferida ao cenário; ambiente, quase herói do conto [raro].

3.8.4 - De Idéia
A) Sem a intenção doutrinária de um panfleto, o 'conteúdo ideológico' do conto de idéia emerge, sempre identificado com a ação e personagens, às vezes convertidas em símbolos, por sua função de expressar tal conteúdo [é freqüente, importante].

3.8.5 - De Emoção
A) Mesclado, às vezes, ao de idéia, outras vezes ao de cenário, conto de emoção: apropriado à comunicação de climas de mistério ou de medo, tudo, na narrativa, objetiva um efeito emocional profundo, resistente, mesmo, ao exame racional.

3.9 - Começo e Epílogo
A) Começo ["canto da sereia", síntese dramática, chama que atrai e seduz], mais exigente que o epílogo do conto [clímax da história, em geral, enigmático, surpreendente, imprevisível, abruptamente revelado], com raízes no começo, próximo, no conto, do fim [contos há sem final enigmático: enigma diluído ao longo da narrativa].
B) "O sucesso do conto está mais em seu 'canto da sereia' inicial que em seu epílogo".

4. Conto, a Poesia e o Teatro
A) Tensão poética do conto: Na sensibilidade e imaginação de contista e leitor de conto; parentesco com o teatro: privilegiam o diálogo, encenam dramas, com personagens que palpitam e vibram diretamente com o público, em espaço e tempo limitados.
B) "No conto: Sensibilidade e imaginação poéticas, com personagens que palpitam e vibram teatralmente".


BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

"A Criação Literária"
Massuad Moisés
Melhoramentos / USP
São Paulo, 1975

"Dicionário de Termos Literários"
Massuad Moisés
Cultrix / USP
São Paulo, 1974
__________________________________________
Caros Alunos,

Aí está o PDF do conto "O Homem de Areia".




abraços,
Monica
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A short film done in the style of a german expressionist silent film. It is meant to illustrate Freud's theory of "the uncanny" which is based on ETA Hoffmann's short story "the Sandman". It is a work in progress.The music is both from public domain recordings of classical music on wax cylinders and some of my own music.Originally it was created as a portion of a documentary feature on sex dolls and the men who love them. It was created to set up a section on the idea of THE UNCANNY.The final version of this is currently making festival rounds right now, including the Short Film Corner in Cannes, and the Nashville international Film Festival.

A SIMBOLOGIA DO OLHAR



NO CONTO DER SANDMANN DE E.T. A. HOFFMANN

de Valburga Huber (UFRJ)



Entre os grandes românticos alemães como os irmãos Schlegel, Novalis, Thiek, Brentano, Achim von Arnim e Eichendorf, Hoffmann, é, sem dúvida, o representante mais genuíno de uma vertente diferente do movimento. Sua literatura fantástica tem ecos até a atualidade, no surrealismo e no realismo mágico sul americano, por exemplo, para nos limitarmos a apenas duas manifestações literárias de grande divulgação.
Hoffmann é, sobretudo, um mestre do conto, ao qual dá cores e significado inconfundíveis. No Romantismo alemão nos deparamos com diferentes concepções de “Märchen” (Contos de fada) tais como: Contos de fada (“Haus-und Kindermärchen”) dos Irmãos Grimm que se desenrolam no passado ou na esfera atemporal do mito; os Contos de fada artísticos (“Kunstmärchen”) de Tieck, Novalis, Fouqué, Brentano..., nos quais a tradição popular une-se a tradição intelectual e há uma ligação com o mundo mítico da unidade dos contrários (eu-mundo; finito-infinito) e os Contos da realidade (“Wirklichkeitsmärchen”) de Hoffmann que são as fábulas dos tempos modernos com a união da realidade e a fantasia, o maravilhoso e o inusitado. É o conto fantástico, onde domina o mundo mágico dos sonhos, dos contos de fada, mas ligado à realidade do seu tempo. Nele saltam aos olhos o suspense, a paradoxalidade, a dissonância.
A percepção da realidade de Hoffmann é irônica e ridicularizante, mas sempre em busca do sobre-humano, do maravilhoso - “a eterna saudade, que habita no espírito”. Sua obra é transpassada do sentimento de dualidade do mundo que condiciona o ser humano: mundo interno-externo; poesia - cotidiano burguês; essência - aparência; imaginação - realidade.
Nos seus contos, os contornos do mundo são vagos, é frequente o jogo do claro-escuro, excelente para construir a atmosfera do estranho, do insólito. A passagem para o sobrenatural é feita pelo enfeitiçamento, pelo sonho, pelo torpor, freqüentemente vistos como loucura (basta lembrar aqui as 12 “vigílias” nos seus vários sentidos - de “O Vaso de Ouro”).
Infere-se dos contos de Hoffmann que são três as formas possíveis de ser: - a do louco, no qual há total independência do espírito do mundo exterior; - a do filisteu (burguês), que não experimenta este dualismo, pois só vive o mundo exterior e - a do artista, que entende o dualismo como destino do ser humano ao qual tem que se submeter (são as freqüentes “forças estranhas” presentes em seus escritos) e tem consciência do perigo e ameaça existencial a que está exposto. O tema central de suas obras fantásticas é, pois, a situação de risco em que se encontra o ser humano, sujeito à desarmonia - homem-natureza. Inseguro, desorientado, ele está a mercê de forças sobre-humanas que nele despertam o medo, o terror tão bem exposto em diversas “peças noturnas”, como: “O Homem da Areia”, entre diversos outros.. Enquanto para os clássicos a luz mostra os contornos, a claridade, a ordem racional, para os românticos são as trevas, a noite que escondem os segredos do ser, o irracional. As “Peças noturnas” estão ligadas, por um lado, ao noturno, ao claro-escuro da pintura, do séc. XVI e pelo outro, aos fenômenos ocultos e psicopatológicos muito pesquisados na época de Hoffmann em estudos sobre o sobrenatural, o anormal, a hipnose, o magnetismo, o sonambulismo, o espiritismo e as doenças mentais.
Parece-nos sempre essencial enfatizar que os contos de Hoffmann têm consciência da ligação com o real, sendo sua ironia e peculiaridades estilísticas que fazem interpenetrar-se real e irreal. São, pois o maravilhoso e o fantástico que penetram na realidade, o que é feito, muitas vezes, pelo surgimento do grotesco. Em Hoffmann vemos formas de grotesco dos séculos anteriores, desde o inferno e seus habitantes até todo tipo de figuras sinistras. (como nos contos de E. Alan Poe “Tales of the Grotesque and Arabesque”).
No grotesco revelam-se subitamente como estranhas e sinistras coisas que nos eram conhecidas e familiares. Hoffmann não apenas introduz elementos imaginários, mas converte os objetos e acontecimentos de aparência objetiva da vida cotidiana, em objetod de outra ordem e o faz pela ambigüidade. O sobrenatural e seus contos são fundamentais nos estudos de Todorov sobre o tema. Ele estabelece (“Introduction à la Litterature Fantastique”) as condições do fantástico: - que o texto obrigue o leitor a considerar o mundo das personagens como um mundo de pessoas vivas e a hesitar entre uma explicação natural e uma explicação sobrenatural dos acontecimentos evocados; - hesitação deve ser sentida também por um personagem; - que o leitor, ante o texto, recuse uma interpretação alegórica ou poética. E “O Homem da Areia” tem, sem dúvida, todos estes requisitos, pois é ,ao mesmo tempo.um conto de fadas romântico e expressão da literatura fantástica.
Quem ler este conto, verá logo que a estrutura narrativa do mesmo nos mostra, nas diversas cartas que vão revelando sua trama como os olhos são o núcleo do conto. Em torno deles,dos olhos, gira já no início do conto a narração do terrível acontecimento” do encontro de Natanael com Coppola que o faz lembrar de “O Homem da Areia” de sua infância. A ambiguidade central do conto baseia-se nas duas versões da estória infantil : a) a da mãe (homem da areia bom), que faz as crianças dormir jogando-lhe areia nos olhos; b) a da babá (homem de areia mau) que arranca os olhos das crianças sem sono para levá-los aos seus rebentos na lua. A estas é acrescida a versão do narrador.na qual o homem de areia é o advogado Coppelius, terror das crianças, que fazia experiências alquímicas com o pai de Natanael que morre numa explosão.
As diversas perspectivas dadas pelo narrador encerram, pois, duas básicas: a de Natanael, que se crê a mercê de uma força estranha superior (encarnada em Coppelius/Coppola) e a de Clara e Lotar, vozes da razão, da serenidade, que acham que estas forças malignas só existem no interior da pessoa e que só representam perigo se transferidas por nós para o mundo exterior e se a elas nos entregarmos. Assim como Coppelius afastava Natanael do seu pai na infancia, o ótico Coppola, afasta-o de seu amor (Clara) e joga-o pelo binóculo nos braços de um autômato (Olímpia). Ele ainda é usado como cobaia para testar a veracidade deste autômato, assim como quase serviu de cobaia ao pai e ao advogado quando menino. Eles o conduzem em complô, a loucura e assistem ao seu fim trágico (suicídio).
Na sua divisão interior extrema.Natanael busca socorro nas figuras femininas: a mãe, a babá e mais tarde, em Clara. Espelha-se nelas para se reencontrar. São seu espelho vivo,onde busca sua identidade. Em Olímpia, um automato apenas, encontrará sua destruição, pois ela apenas simulacro de vida, morte, portanto.
Este conto de fadas comum torna-se conto fantástico pela imaginação do narrador e o poder de sua linguagem. Este começa com o uso de nomes que são simbólicos: Clara significa razão, iluminada; Siegmund: (munt: proteção); Natanael: nome de origem obscura já indica a estranheza do protagonista que (equivale a Teodoro - latim -: dado por Deus. Atrairia de forma especial as forças das trevas que querem destruí-lo?); advogado Coppelius e o vendedor de barômetros Coppola: o 1º pode enganar pela profissão e o 2º vende instrumentos para previsão do tempo, mas com valor científico duvidoso. E Coppelius/Coppola significam buracos dos olhos e cubas para experiências alquímicas, onde se separam os elementos. Isto pode ser associado a “poder obscuro” (força demoníaca) e sombrio, terrível destino; Olímpia: a que vem do Olimpo, linda, perfeita, para mencionar só os mais significativos.
É sem dúvida o olho, o olhar, com seu vasto campo semântico e metafórico - ligado a vida (ser humano) ou a morte (autômato) o campo mais fértil. Este vai desde os órgãos da visão, expressão de sentimentos, até retratos de estados de alma (crença popular: olhos como janelas da alma). As duas concepções são usadas pelo narrador em muitas metáforas e o medo da perda dos olhos se repete em várias cenas reais (no laboratório do pai, na infância, na compra do binóculo, na luta por Olímpia) e também em cenas imaginadas (nos seus poemas). São cenas em que os rostos aparecem sem olhos, e os olhos de Olímpia, nos quais ele refletia o seu eu, ao serem arrancados, o levam a loucura. A palavra “Auge” (olho) esta ainda ligada a processos alquímicos e metaforicamente os buracos negros dos olhos são a falta de alma, de vida. Os instrumentos óticos - óculos, binóculos, lornhões, são também, metaforicamente, como distorcedores da realidade. É pelo binóculo que se apaixona por Olímpia (começo de sua ruína) e é também através dele que tem a visão distorcida de Clara no final do conto, que lhe trazem lembranças terríveis do passado e o levam a loucura e a morte. Segundo estudo de Rudolf Drux - o qual utilizamos aqui para melhor elucidação da narrativa - até a palavra “Sköne Oke” (belos olhos) usada por Coppola em seu alemão pobre, já expressa, lingüisticamente, a deformação, a destruição de Natanael. Em relação ao riquíssimo campo metafórico dos olhos, e instrumentos a eles relacionados, vale destacar algumas passagens. A primeira é a experiência de alquimia que Natanael vê na sua infância. Nela, ao ser surpreendido, é ameaçado de cegueira, por Coppelius; a segunda é a visão de Natanael do seu proprio casamento e a terceira é a cena em que Natanael compra o binóculo de Coppola:
Que venham os olhos, que venham os olhos! Pequena besta.... Agora temos olhos - olhos - um lindo par de olhos infantis. (p.118)
... diante do altar, aparecia o terrível Coppelius que tocava os encantadores olhos de Clara, que saltavam no peito de Natanael, como faiscas sangrentas, chamuscando e ardendo.
Milhares de olhos olhavam e piscavam convulsivamente, dardejando Natanael; e Coppola continuava tirando cada vez mais óculos, e cada vez com mais voracidade olhares inflamados saltavam uns sobre os outros, atirando no peito de Natanael seus raios vermelhos de sangue. (p. 134)
No final do conto, destaca-se a cena de quando Natanael vê Clara distorcida pelo binóculo e quer matá-la, num derradeiro acesso de loucura:
Clara estava diante das lentes! Um estremecimento convulsivo percorreu suas veias e seu pulso... De repente, os olhos dela, girando em suas órbitas, expeliram raios de fogo; ele começou a uivar terrivelmente como um animal acuado... (p. 145)
A relação de Natanael com o mundo se dá através do olhar e, no conto, de forma distorcida através de binóculo. Ironicamente, uma lente de aumento que deveria ajudá-lo a ver melhor o mundo, distorce este mundo e lhe dá conseqüentemente uma falsa imagem do mesmo. Com as lentes vê vida onde há fria mecânica (em Olímpia) e morte onde há vida (em Clara). Tomado por forças demoníacas, torna-se autômato, (como Olímpia) marionete de forças estanhas. A consciência dessa manipulação leva-o à loucura.
Como conto fantástico, a interpretação mais famosa de “O Homem da Areia” é a feita por Freud, em 1919, ensaio: “Das Unheimliche” (O Insólito). Segundo ele, o efeito “insólito” da narrativa se deve a dois fatores: a) o medo da perda dos olhos, que no seu vasto estudo acaba sendo associado ao medo da castração, como em Édipo. b) o paralelo boneca/ser humano; a sensação infantil comum de poder transformar uma boneca em ser vivo, humano, dando-lhe vida pelo olhar.
Mas toda a análise freudiana - que aqui apenas queremos mencionar - esta relacionada ao complexo de castração que torna o menino fixado ao pai e incapaz para o amor pela mulher.
De um modo geral, vê-se, pois, que o “Eu” em Hoffmann: não é único, inconfundível, bem delimitado. Ele é um estado de consciência fraco, sujeito a vários perigos. O sujeito, centro da experiência do mundo (Fichte), não têm certeza de si mesmo (posição de zombaria e sarcasmo), e pode ter uma dupla personalidade (daí os autômatos). O limite entre o mundo real e a fantasia é uma construção do filisteu, do burguês. Em Natanael, no final do conto, apaga-se este limite. A percepção do maravilhoso já não é possível depois do pecado, da perda da harmonia entre o homem e a natureza (e Deus). Só surge nos que tem um sexto sentido para isso: poetas, escritores, mas até isso é posto em dúvida pelo autor. A maioria vive absorvida pela roda viva do cotidiano. Entrada no mundo do maravilhoso é perigosa e pode despertar os poderes demoníacos. Mundo interno e externo se confundem, a consciência fica abalada, a realidade é ambígua e escorregadia. Do mundo maravilhoso do mistério apenas o sonho e a fantasia nos dão dele apenas uma vaga idéia. Natanael é daqueles que (como Theodor de “Das öde Haus”) penetram nesses mistérios e sofre os revezes (distorção da lente), e sucumbe à loucura. O mistério deve continuar mistério; intocável como tal.
O interesse e a atualidade do conto é comprovado pelo fato de que praticamente todas as escolas de teoria literária ocuparam-se de alguma forma com ele. As questões comuns estudadas são: a duplicidade do protagonista Coppelius/Coppola; o caráter de Clara, a variação de perspectivas narrativas, o tema dos olhos, da boneca, ou seja, a automação e a loucura nos diversos contextos entrelaçados no conto.
São contos como este de Hoffmann que foram precursores da Literatura do Realismo mágico sul-americano - que seguiu uma vertente própria, sob a idéia da utopia do novo mundo e mitos do continente. Mas de V. Llosa, Cortazar, Garcia Marques a Borges e outros grandes nomes do contexto latino-americano fica difícil até imaginá-los sem ter passado pelo “clássico” Hoffmann. Ele é também tema de inúmeros estudos teóricos como os de Todorov e G. Deleuze. O realismo mágico sul-americano foi além e pode-se dizer que mesmo os escritores latino-americanos que exploram toda a riqueza mítica e mágica da América, criam um tipo de Literatura fantástica diferente da literatura fantástica européia, mas todos beberam na fonte do clássico Hoffmann. Estes autores situam-se no nível do “sentido” de Deleuze (“A teoria do sentido”), pois nestes contos há um contínuo jogo sentido/sem sentido; caos/cosmos, numa série de paradoxos que se encaixam, porém no sentido de uma estória maior. Mas Hoffmann, com seus temas fantásticos e recursos estilísticos marcantes já era precursor claro dos mesmos.
Por todos esses motivos, Poe, Baudelaire, Gogol, Kafka e os surrealistas franceses chamaram Hoffmann “o primeiro artista moderno”.


BIBLIOGRAFIA

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HUGO, V. Do Grotesco e do Sublime. São Paulo: Perspectiva, 1988. (Coleção Elos).

O HOMEM DE AREIA, O ESTRANHO E AS ESTRUTURAS DO FANTÁSTICO




de Jefferson Vasques Rodríguez

“…toda a vida era pra ele sonho e pressentimento.”
Trecho de “O Homem de Areia”


Construído inicialmente em forma epistolar – forma subitamente interrompida pela voz exterior e anônima de um narrador – o conto trata evidentemente de um processo de loucura, mas que será sustentado, ao final, na ambigüidade da ficção, como real. Um jovem (Nathanael), afastado de sua família por razões de estudo, encontra um vendedor de barômetros e acredita ser ele o mesmo advogado Coppélius responsável, quando ainda era criança, pela morte violenta de seu pai. O vendedor se chama Coppola, o que contribui para que o personagem confirme essa identificação. A lembrança de Coppélius identificado por Nathanael, quando pequeno, à figura aterrorizante de um "homem da areia" (artimanha impingida às crianças para convencê-las a ir para a cama) que visitava o pai com alguma freqüência, sempre à noite, o assombra e o atemoriza na atualidade, trazendo de volta uma experiência fantasmática da infância (a morte do pai). Nathanael escreve ao irmão de sua noiva (Clara) e esta lhe responde que seu temor em relação ao advogado Coppélius (reanimado pela imagem do vendedor Coppola) é obra de sua imaginação infantil, pois o terrível "homem da areia" não passava na verdade de um alquimista e que a morte de seu pai, longe de poder ser vista como resultado dos poderes malignos do advogado, era conseqüência exclusiva e bastante comum de explosões causadas pelo tipo de experiência a que se entregavam os dois durante a noite. Clara traz, portanto, a dimensão do real ao relato imaginário de Nathanael. Mas isto não se revelará suficiente e Nathanael passará a importunar Clara com seus pensamentos sinistros e turvos. Os dois brigam após Nathanael ter lhe apresentado um poema onde Coppélius arranca os olhos de Clara e impede o amor dos dois. Depois de uma estada junto à família, Nathanael volta à cidade onde estuda e se instala num apartamento cujas janelas dão para a casa de seu professor, o físico Spalanzani. Recebe aí, novamente, a visita de Coppola, agora vendendo óculos, lentes e lunetas. Com uma dessas lentes, conseguirá ver a "filha" de Spalanzani, Olympia, e se apaixonará por ela de uma maneira cega, completamente obsessiva. Finalmente, descobrirá que Olympia é um autômato criado conjuntamente por Spalanzini e Coppola (ou Coppélius) sendo acometido de um surto de loucura que o leva a tentar matar Spalanzani. Desmaia e retorna ao seio familiar recuperado. Após um pequeno período de aparente sanidade e reconciliação com Clara, enlouquecerá definitivamente, terminando por se atirar de uma torre (depois de tentar matar sua noiva) ao ver Coppélius lá embaixo, no meio da multidão.


O Estranho em “O Homem de Areia”

A palavra alemã “unheimlich” é impossível de ser traduzida. Um possível equivalente seria a palavra “estranho”. No alemão, “unheimlich” pode significar tanto algo que não é familiar, não é conhecido, como algo que é familiar, usual. Segundo os estudos de Freud (artigo “O Estranho”), isso é muito significativo pois o estranho se caracteriza justamente por algo que era familiar e se torna subitamente e inexplicavelmente estrangeiro, estranho. Segundo ele, o estranho deriva seu terror não de alguma fonte externa ou desconhecida mas, pelo contrário, de algo estranhamente familiar que supera quaisquer esforços do indivíduo para se separar dele.

Sua indescritível qualidade é, na verdade, parte integral do entendimento da experiência do estranho, que é terrificante justamente porque não pode ser adequadamente explicada. Tomemos aqui as palavras sábias do narrador de “O Homem de Areia” : “...era como se você precisasse resumir logo na primeira palavra tudo o que de maravilhoso, esplêndido, terrível, divertido e cruel lhe aconteceu, causando a todos a sensação de um choque elétrico. Mas cada palavra, cada sílaba, tudo lhe parece sem cor, frio e morto.” Melhor do que tentar uma definição para a experiência do estranho, a maioria dos críticos e escritores lança mão, para descrevê-la, das visões sonambúlicas que a acompanham. Neste conto em específico, o suposto narrador utilizou das próprias cartas trocadas entre os personagens para jogar o leitor diante da situação estranha. O narrador justifica essa atitude no fato, já ressaltado, da dificuldade de reproduzir as características de um acontecimento estranho a outrem: “O maravilhoso e estranho dessa aventura arrebatou minhálma, e eis por que, caro leitor, eu precisava despertar em você a inclinação para o fantástico, o que não é nada fácil, e me esforçar para começar a história de Nathanael de forma significativa, original, surpreendente…”. Tratando-se exatamente de um conto fantástico, esse trecho de O Homem de Areia de Hoffmann, acaba soando irônico devido ao espelhamento entre o autor real Hoffman e o narrador personagem, ambos tentando lançar o leitor para dentro do fantástico, fazendo com essa sentença que o leitor se entregue cada vez mais a idéia de que o narrador personagem é realmente Hoffmann, aproximando realidade de ficção, permitindo justamente assim o nascimento do fantástico.
Freud discute como um autor pode através do estreitamento dos limites entre a realidade e o imaginário evocar um sentimento estranho no leitor. Percebe, com bastante razão, que o conto fantástico não produz uma ficção codificada enquanto tal, fechada dentro de seu próprio registro, mas extrapola as convenções ficcionais ao apresentar a ótica do personagem não como puro delírio, mas como o real possível. Por essa razão, pode ser produzida a sensação de “unheimlich”, o que não ocorre em Shakespeare. É verdade que o narrador faz nascer em nós, no início, uma espécie de incerteza no sentido em que, intencionalmente, não nos deixa adivinhar se pretende nos introduzir na vida real ou num mundo fantástico de sua intenção. Certamente, um autor tem o direito de fazer tanto uma coisa quanto outra, e se escolheu, por exemplo, como cena, um mundo onde evoluem espíritos, demônios e espectros, como Shakespeare em Hamlet, Macbeth, devemos segui-lo e tomar por real, durante todo o tempo em que nos abandonamos a ele, esse mundo de sua imaginação.
Em “O Homem de Areia”, o limiar, a simultaneidade, entre o real e o imaginário é sustentada pela atmosfera ambígua das memórias assustadoras da infância de Nathanael contrapostas à análise aparentemente idônea de um narrador à parte da ação, ou ainda, sustentada pelos devaneios sonambúlicos de Nathanael questionados diante da frieza racional de Clara.
Através do olhos de Nathanael, objetos da realidade cotidiana são tomados de assalto pelas emoções infantis ambíguas, relacionadas a trágica perda de seu pai, dessa forma ganhando feições assustadoras. Na carta enviada a Lothar, que abre o conto, Nathanael reconhece que suas atitudes se devem a projeções descontroladas: “...Você pode imaginar que somente circunstâncias bem particulares e marcantes de minha existência são capazes de explicar o significado desse incidente.”. No caso, o incidente citado refere-se a expulsão do vendedor de barômetros de seu apartamento, vendedor que é fantasticamente reconhecido como sendo Coppélius. Apesar da percepção consciente da origem de suas atitudes, a entrega de Nathanael a tais sentimentos estranhos faz com que o leitor deslize lentamente para dentro de seu universo fantástico, para dentro de sua mente infantil, passando também a se confundir com o que seria real ou ficcional. É exatamente isso que se segue. Os fatos de sua infância são relatados através de seus olhos infantis, transferindo toda a carga emocional e ambígua para o leitor, que certamente já viveu experiências semelhantes em sua própria juventude, como o terror de sombras e sons em meio à escuridão.
A intromissão de um narrador amigo de Nathanael, após a exposição das cartas, confere realidade à história que vinha sendo apresentada. O narrador endossa a realidade dos fatos com suas divagações sobre a qualidade do real, o que certamente instiga a curiosidade do leitor sobre o assunto. Através desse artifício Hoffman consegue manter o leitor aberto a esse limiar de percepção, onde imaginário e real se confundem : “ Talvez, o leitor acredite que nada é mais fantástico e louco do que a vida real...”. O narrador, que interfere e dialoga com o leitor de maneira lúcida e aparentemente bem intencionada, é o contraponto para as primeiras páginas de entrega às emocionantes e coloridas. O narrador se apresenta no momento em que o leitor, depois de ter experimentado junto com Nathanael suas aventuras infantis, começa a se questionar sobre o que foi lido. Justamente, quando surge o perigo da interpretação do texto, perigo ressaltado por Todorov em seu trabalho sobre o fantástico, surge o narrador que de amistosamente conduz o leitor, sustentando-o no limiar da significação. Abrem-se dessa forma as possibilidades para o texto que irá prosseguir.

Tema típico dos textos fantásticos, e que pode ser encontrado em “O Homem de Areia”, é do inanimado animado e seu contrário. O autômato Olympia serve de tela branca para as projeções amorosas de Nathanael. A passividade da boneca serve de espelho para a obssessiva paixão de Nathanael que o torna cego diante das atitudes mecânicas e artificiais da amada. A gradação na evolução das descobertas dentro da narrativa e o desvio do foco de interesse do leitor são utilizados aqui, no caso do autômato Olympia, assim como em muitos outros contos fantásticos, para garantir o envolvimento e ambigüidade entre a sugestão e reconhecimento. Olympia não é apresentada logo de inicio como autômato, o que apenas pode ser deduzido, aos poucos, nos detalhes oferecidos: “...seu olhar tinha algo de fixo, diria ate que não via nada, como se ela dormisse de olhos abertos.”, “Apenas os olhos pareciam-lhe estranhamente hirtos e mortos.”. No trabalho de Freud sobre o estranho pode-se encontrar a seguinte afirmação de Jentsch : “ Ao contar uma história, um dos recursos mais bem sucedidos para criar facilmente efeitos de estranheza é deixar o leitor na incerteza de que uma determinada figura na história é um ser humano ou um autômato, e fazê-lo de tal modo que a sua atenção não se concentre diretamente nessa incerteza, de maneira que não possa ser levado a penetrar no assunto e esclarecê-lo imediatamente. Isto como afirmamos, dissiparia rapidamente o peculiar efeito emocional da coisa.” Ironicamente, Clara, se torna, de forma gradual, um autômato diante dos olhos visionários de Nathanael, culminando mais explicitamente com esta fala dirigida a sua amante: “Maldito autômato sem vida!” (Clara é descrita pelo narrador como alguém cheia de vida, penetrante e lúcida). Nathanael retira a vida do mundo real (Clara) redirecionando-a ao seu mundo imaginário (Olympia).
Em “O Homem de Areia” pode-se observar a presença abundante do tema dos duplos, personagens que possuem traços físicos ou mentais semelhantes, como: Coppelius e Copola, Spallanzani e o pai de Nathanael. Nas palavras de Freud: “As outrras forma de perturbação do ego, explorados por Hoffmann, podem ser facilmente avaliadas pelo mesmos parâmetros do tema do duplo. São elas um retorno a determinadas fases na elevação do sentimento de autoconsideração, uma regressão a um período em que o ego não se distinguia ainda nitidamente do mundo externo e de outras pessoas. Acredito que esses fatores são em parte responsáveis pela impressão de estranheza, embora não seja fácil isolar e determinar exatamente a sua participação nisso. “ Além de personagens duplicadas, ocorre o espelhamento de situações como: a tentativa de arrancar os olhos de Nathanael e os olhos arrancados de Olympia; o calmo despertar no colo materno após o encontro entre Nathanael, seu pai e Coppélius e o calmo desperta no colo de Clara após o encontro entre Nathanael, Spalanzani e Coppola; as intervenções de Coppelius impedindo a ventura amorosa de Nathanael e Clara (no poema e na última cena).
Com as características acima apresentadas, o “Homem de Areia” se encaixa perfeitamente na definição de fantástico fornecida por Todorov. A primeira premissa, de que o texto “obrigue o leitor a considerar o mundo das personagens como um mundo de pessoas vivas e a hesitar entre uma explicação natural e uma sobrenatural dos acontecimentos evocados” é atingida, como já se falou anteriormente, pela interrupção do narrador garantindo realidade às cartas, pela gradação, pela ambigüidade mantida pela perturbada narrativa de Nathanael, pela frieza e racionalismo de Clara servindo de contraponto às sensações e intuições de Nathanael. A segunda premissa preenchida: a hesitação do leitor neste texto também é sentida pelo personagem principal, como requer Todorov. Nathanael entende estar sofrendo de reminiscências e confusões mentais e mesmo assim se entrega às revoluções aparentemente fantásticas que sua mente, ou a realidade, produzem. A narração inicial, em primeira pessoa nas cartas, estimula a identificação do leitor ingênuo com o personagem assim como a gradativa intensificação da loucura de Nathanael garante a ambigüidade da interpretação de seus pensamentos, fazendo com que a própria situação limite entre o real/imaginário, loucura/sanidade torne-se o tema do texto, assegurando-se dessa forma a terceira premissa de Todorov.

Estruturas do Fantástico – um paralelo entre Freud e Todorov
Todorov, apesar de procurar distinguir a visão psicoanalítica de Freud de sua própria visão estruturalista, compartilha de muitas das conclusões de Freud, especialmente na questão de atribuir o terror da ficção ao colapso dos limites entre o Eu e o outro, entre a vida e a morte, o real e o irreal.
Em sua análise estrutural do fantástico enquadra seus temas em dois grupos: os temas do Eu e os temas do Tu. Segundo essa classificação do fantástico, pode-se enquadrar o conto “O Homem de Areia” como pertencente ao grupo de temas do Eu: nesse conto há fusão de caracteres dos personagens, portanto a duplicação; figuras do passado revivem em outros personagens no presente e, por isso mesmo, o tempo se encontra relativizado (relativiza-se porque necessariamente passa pela mente e memórias de Nathanael onde emoções do passado se encontram vivamente presentes); evidencia-se a indiferenciação entre o eu e o mundo exterior, aliás, Nathanael por negar a realidade do mundo exterior se torna cativo de seu auto-erotismo, de sua paixão por Olympia, projetando se mundo interior e com isso indiferenciando real de imaginário. Nathanael espelha-se no autômato, que se torna assim um símbolo de sua própria recusa à vida, recusa à comunicação. Segundo as idéias de Freud, pode-se dizer que o instinto de morte prevalece.
Segundo Feud: “uma experiência estranha ocorre quando os complexo infantis que haviam sido reprimidos revivem uma vez mais por meio de alguma impressão, ou quando as crenças primitivas que foram superadas parecem outra vez confirmar-se”. A descrição que Freud dá à esse estado de reafirmação de crenças primitivas é extremamente similar à que Todorov dá ao tema do EU: onipotência de pensamentos, pronta realização dos desejos, maléficos poderes secretos, retorno dos mortos, concepções pré-intelectuais da causalidade, do espaço e do tempo. Segundo Todorov, esse tema se caracteriza pela ruptura dos limites entre matéria e espírito, tornando-se possível a passagem do espírito à matéria, e vice-versa. Nathanael vive seu eterno presente traumático, projetando sobre outros seu imaginário, fazendo com que o mundo adquira um aspecto indistinto e uno, já que tudo que é real se encontra abarcado dentro de sua mente. Nathanael não dá espaço para que a realidade se apresente sem distorções em seus pensamentos. Sua linguagem, à medida que caminha o conto, torna-se cada vez mais pessoal e misteriosa. Esse traço é caracterísitco nos esquizofrênicos que instauram uma “linguagem privada”.
O segundo motivo, explicado por Freud, para a experiência do estranho, o renascimento de complexos reprimidos, se encaixa com o segundo grupo temático de Todorov, temas do Tu, onde os problemas do homem com outrem são fundamentais e, por isso mesmo, também conhecido como temas do discurso. Surgem desse estado características semelhantes à da neurose: perversão, enfrentamento da culpa e responsabilidade, reconhecimento do Outro, enfrentamento da ordem estabelecida.
Nota-se, portanto, o interessante paralelo entre as idéias psicanalíticas de Freud e o estruturalismo de Todorov: no caso das repressões (temas do Tu), o que fora reprimido é um determinado conteúdo ideativo e no outro, no caso das crenças primitivas (temas do Eu), a sua realidade material.
Fazendo mais um paralelo ainda com os trabalhos desenvolvidos pela Psicologia Analítica, principalmente pelo seu fundador Carl Jung, poderia-se reassaltar o seguinte paralelo: 1. Temas do Eu (Todorov) – crenças superadas que reaparecem (Freud) – fracasso no enfretamento da Grande Mãe arquetípica (Jung), onde a Grande Mãe simboliza os princípios eternos geradores da vida, portanto, o enfrentamento da Grande Mãe é o enfrentamento da inconsciência geradora primordial. O fracasso do herói diante dessa luta acarreta o aprisionamento em si mesmo, o desconhecimento do Outro, estado onírico primitivo (onde as crenças superadas revivem);
2. Temas do Eu-Tu (Todorov) – reminiscências (Freud) – fracasso diante do enfrentamento do Grande Pai arquetípico (Jung), onde o Grande Pai simboliza os princípios mutáveis da cultura. Essa luta com o Pai leva ao questionamento dos antigos costumes e limites transmitidos e aceitos. A derrota acarreta a incoerente relação com o Outro.
Análise Psicológica
Freud analisa o conto, interpretando toda a questão relativa aos olhos (o "homem de areia" é aquele que vem jogar areia nos olhos das crianças, Coppola vende lentes e lunetas, além de ter criado os olhos de Olympia etc.) como medo de castração; a obsessão por Olympia como amor narcísico, e, por conseguinte, a trajetória de identificação do personagem (confundindo realidade com imaginação) como um "retorno a certas fases da história evolutiva do sentimento do ego, (...) regressão à época em que o ego não se encontrava ainda claramente delimitado em relação ao mundo exterior e ao outro".
Segue-se aqui uma tentativa de reformular a idéia principal de Freud sobre a castração de Nathanael. Esta nova perspectiva torna-se necessária diante das inconsistências apontadas por contemporâneos de Freud, em especial, Jung e Erich Neumann, inconsistências que acentuaram-se com o desenvolvimento de novos estudos e que, hoje, são consideradas ultrapassadas até mesmo por seguidores da Psicanálise.
A questão essencial, relacionada ao conto, nasce da interpretação errônea que Freud faz de símbolos como cegueira, olhos, visão. Para Freud, a perda da visão de Nathanael representaria o “deslocamento para cima” da castração fálica, de cuja perspectiva “perder a cabeça” seria idêntico a “ficar impotente sexualmente”, o que não corresponde, mitológica, simbólica nem psicologicamente, à verdade. Além disso, no complexo de Édipo há para Freud envolvimento real, histórico entre os familiares.
Nas palavras de Neumann, a teoria de Freud seria a de que: “Um poderoso patriarca-macaco rouba as mulheres dos filhos e é abatido pelos irmãos unidos. A superação do pai é o aspecto heróico. Freud toma isso ao pé da letra e deriva daí o totemismo e o surgimento de características importantes da cultura e da religião. Aqui, como noutras partes, devido ao seu preconceito personalista, Freud interpretou fatores decisivos de maneira errônea. Não obstante, o assassinato do pai continua, com toda razão, um importante momento da luta com o dragão, mas não é o conteúdo essencial dessa luta e muito menos o ponto de partida da história do desenvolvimento da humanidade.”
Partindo de outra perspectiva, Jung, em seu livro Transformações e Símbolos da Libido, chega a duas concepções diversas e coerentes. Mostra, em primeiro lugar, que a luta do herói é um combate a uma mãe que não se pode considerar uma figura pessoal do romance familiar. Por trás da figura pessoal da mãe, encontra-se – como é comprovável pelos símbolos e grupos de símbolos – o que Jung chamou mais tarde o “arquétipo da mãe”. Jung conseguiu comprovar o significado transpessoal da luta do herói porque não tomou o aspecto familiar pessoal como o ponto de partida para o desenvolvimento humano, mas sim o desenvolvimento e transformação da libido. Nesse processo de transformação da humanidade, a luta do herói desempenha um papel eterno e fundamental na superação da inércia da libido, inércia que se apresenta no símbolo da mãe-dragão-vazio-escuro-feminino-yin circundante, isto é, do inconsciente.
O herói tem ambos os Primeiros Pais contra si e deve vencer tanto a parte masculina como a parte feminina da uroboros. Nathanael luta para livrar sua libido da inércia original dirigida aos pais, não havendo necessariamente, na idéia de castração, apenas implicações sexuais. O medo da castração representa o medo primordial do elemento masculino diante do elemento feminino em geral. Nathanael tenta se tornar o herói arquetípico, penetrando consciente e ativamente no perigoso elemento feminino, vencendo assim o domínio da mãe e posteriormente o do pai. Falhar na resolução dos vínculos com o pai é regredir a um estado infantil, abraçando novamente a Grande Mãe urobórica que espreita por trás dos desafios do filho com seu Pai Terrível. Observa-se, dessa maneira, como a perspectiva muda claramente com relação à teoria freudiana: não é o Pai que impede o filho de chegar a Mãe, mas a incapacidade do filho (impotência, mas não essencialmente sexual) que leva o filho de volta ao colo materno.
Nathanael tentando se libertar do cativeiro da Grande Mãe arquetípica deixa o mundo do falo-sexo substituindo-o por um falo superior, ou por uma masculinidade superior, com a qual o ego se identifica, a saber, a cabeça como símbolo da consciência e o olho como órgão que a domina. Neumann completa: “Não ha necessidade de que demonstremos serem aqui a cabeça e o olho apresentados por toda parte como símbolos superiores do aspecto masculino e espiritual da consciência, do “Céu” e do “Sol”, Também os grupos de “alento-pneuma-ruach” e de verbo-logos fazem parte desse cânone de símbolos pelos quais se distingue a masculinidade superior da inferior, de nível fálico.”

Como Freud bem observou, Coppelius e o pai de Nathanael simbolizam o Pai Terrível e o Pai Espiritual “Bom”, respectivamente. Coppelius é um sequaz, um sacrificador a mando da Grande Mãe, um representante do mundo materno fálico do qual Nathanael quer se afastar. É interessante observar como o personagem de Coppelius é descrito pelo protagonista como alguém aqueroso, nojento, ctônico, caracterisitcas marcantes da energia fálica negativa que envolve o relacionamento com a grande Mãe por parte daquele que desse abraço quer se livrar, o pretensioso herói. A identificação de Natahanael com o Pai Terrível é sua regressão e, portanto, a castração de suas novas características, que poderíamos chamar de características superiores, ou ainda, segundo os estágios compreendidos pelas idéias de Freud, seu novo caráter genital.
Infelizmente, para o personagem principal desta pequena história, falta-lhe ainda a coragem e energia suficiente para se livrar do colo materno, fato que fica perfeitamente caracterizado pelo morno e calmo despertar no colo de sua mãe após os terrível momento de castração. Essa cena se repetirá com Clara, pois projeta nela o mesmo tipo de relacionamento arquetípico de entrega-absorção que desenvolvia com sua mãe, bastando relembrar alguns trechos de seu poema que simbolizam o herói sendo dragado pelo inconsciente: “É Clara, e serei dela eternamente...mas era a morte que o contemplava calmamente nos olhos de Clara”; o despertar no colo de Clara, ocorre depois do segundo surto de loucura diante da representação espelhada da castração inicial, quando o professor Spalanzani (duplo de seu pai) briga com Coppola (duplo de Coppelius) pela boneca Olympia (duplo do próprio Nathanael afeminado, herói vencido e sacrificado à Grande Mãe).
Por renunicar a tentativa de se relacionar com a realidade, com o Tu que o rodeia (estágio genital); Nathanael, ao invés de conquistar a visão superior que fundisse tanto o Pai Bom como o Terrível, abarcando a dualidade de seu próprio caráter, ao invés disso, Nathanael regressa à Grande Mãe isolando-se através de seu olhar narcísico para o mundo-Eu. O mundo de Nathanael não é o relacionamente entre um Eu e Outro e sim um Eu-Olhar estático, onde tudo já está contido, de onde objetos são animados e aniquilados. Renunciando a luta, o candidato a herói, agora entregue e amedrontado, se identifica com o Pai Terrível. Essa identificação pode ser observada em diversas partes do conto: Nathanael através dos binóculos de Coppola aceita esse mundo narcísico, acaba por vender sua alma. Chega mesmo a reconhecer inconscientemente: “...é estranho que eu me atormente tanto por ter pago caro demais pelo binóculo de Coppola; não vejo razão para isso.” E como poderia ele ver razão no estágio de cegueira e irracional inconsciência em que se encontrava? Nathanael pagou com sua própria vida.
Mais adiante no conto, na tentativa de matar o professor Spalanzani percebe-se a completa identificação e descontrole emocional gerado contra Coppelius, seu Pai negativo. Neumann ilustra bem essa situação: “O herói é apoiado pela mãe boa sob a forma de sua própria mãe e da virgem fraternal, quer fundidas ou como figuras distintas. O pai divino do herói intervem em situações decisivas como auxiliar ou permanece em segundo plano, na expectativa. Na expectativa porque só a provação do herói pode demonstrar o caráter genuíno de sua filiação. Esperando e testando dessa forma, o pai divino pode ser facilmente confundido com o pai negativo, uma vez que o pai que envia o seu filho para o perigo é uma figura ambígua, de características pessoais e impessoais.”
Não se pode deixar de comparar o trágico desfecho do conto ao mito babilônico de Etana, em que o herói raptado por uma águia, caio do céu e se despedaça, situação que se repete em Ícaro, que voa demasiado perto do Sol, e, em Belerofonte, que tenta chegar ao céu no cavalo alado Pégaso, mas cai na terra e enlouquece. O final de conto resume todo o processo conflituoso pelo qual passou Nathanael. A subida à torre, às alturas, aos Céus, símbolo da aproximação do Pai-Espírito; aproximação que não consegue ser conduzida adequadamente levando-o novamente ao encontro da Terrível Mãe Tectônica, caindo à Terra, com a cabeça despedaçada (eis a castração e o despedaçamento de sua consciência característicos de um surto esquizofrênico). Os aspectos patriarcais (Coppelius) e matriarcais (Clara) se encontravam presentes tencionados dinamicamente: diante da frustração do enfrentamento do Pai, o abraço materno. Na tentativa desesperada de se esquivar ao mundo materno (Coppelius), Nathanael é levado a um estado de possessão, de inflação celestial, “aniquilação por meio do espírito”. Nessa condição o ego-herói perde a consciência de sua natureza dual, ao romper os laços com sua parte terrena. Segundo Neumann: “Por trás da castração patriarcal via inflação, espreita a figura devoradora da uroboros – lembre-se das palavras de Nathanael em seu momento de loucura “Roda de fogo gire, roda de fogo gire!”, o círculo como símbolo da uroboros – combinando em si a voracidade do masculino e do feminino. Na atração pela plenitude divina, os aspectos maternal e paternal da uroboros se fundem – eis porque o ataque a Clara semelha-se ao ataque a Spalanzani, torna-se já indestinguível imago paterna e imago materna, todas são igualmente devoradoras e ameaçadoras. A aniquilação pelo espírito, isto é, pelo Pai do Céu, e a aniquilação pelo inconsciente, isto é, pela Mãe da Terra, são idênticas, como ensina o estudo da psicose.”
Cegueira: “... símbolo da ignorância e do deslumbramento, mas também da imparcialidade e do abandono ao destino, e desse modo exprime o desprezo pelo mundo exterior face à luz interior” (Dicionário Ilustrado de Símbolos). Essas palavras cumprem a essência da personalidade de Nathanael, figura quase tão trágica quanto Édipo, sendo ambos igualmente incompreendidos por Freud.

O Estranho – uma nova perspectiva
É sabido que a mitologia para os antigos era algo real e não mera representação. Quando admiravam estátuas estavam realmente admirando seus deuses e não se referindo indiretamente à sua significação através de uma imagem. A mitologia portanto surgiu num mundo uno e primitivo, semelhante ao período infantil de desenvolvimento explicado por Piaget: “No ponto inicial da evolução mental não existe certamente nenhuma diferenciação entre o eu e o mundo exterior.” Esse estado pode ser entendo como a “participation mystique” de Lévy-Bruhl, idéia tão profusamente utilizado pelo psquiatra suiço Carl Jung. À partir do momento em que o imaginário e o real deixam de ser uma coisa só o primeiro passa a ser percebido como representação do segundo. Isso é corroborado pelos estudos de Nietzsche em “O nascimento da tragédia”: “…qual o sentimento com que se recebe o milagre representado na cena? …o provável é que…quase todo mundo sinta-se tão decomposto pelo espírito histórico-crítico de nossa cultura, que a existência do mito outrora se nos torne crível somente por via douta, através de abstrações mediadoras.” Nietzsche explica como na Grécia antiga as características dionisíacas (inconsciência, sensação) e apolíneas (consciência, percepção) eram apreciadas e trabalhadas conjuntamente. Toda a cisão tem início com Sócrates e sua linha de pensamento: “Até então os gregos se haviam sentido involuntariamente obrigados a ligar de pronto a seus mitos tudo o que era por eles vivenciado, sim, a compreendê-los somente através dessa vinculação: com o que o presente mais próximo havia de se lhes apresentar desde logo sob o aspecto do eterno…O contrário disso acontece quando um povo começa a conceber-se de um modo histórico e à demolir a sua volta os baluartes míticos…”
O “unheimlich” só pode existir num mundo cindido, alegórico, não-mitológico, onde o ego unilateralmente individuado sente todo o resto da psique como um corpo estranho e invasor. Assim como o sobrenatural, o “unheimlich” só é possível num mundo onde o espírito e o real estejam separados. O “unheimlich” pode ocorrer quando alguém acredita em fantasmas que voltam do além. Mas fantasmas só podem voltar do além se existir um além e, portanto, uma cisão. No estado de “participation mystique”, aqui e além, natural e sobrenatural, são uma coisa só. Por isso, não pode haver terror nesse estado poético, pois não existem corpos e espíritos, mas corpos-espíritos. Utilizando ainda pensamentos de Nietzsche: “A claríssima nitidez da imagem não nos bastava: pois esta parecia tanto revelar algo como encobri-lo; e enquanto, com a sua revelação similiforme, ela parecia convidar a rasgar o véu, ao desvelamento do fundo misterioso, precisamente aquela transluminosa onivisibilidade mantinha outra vez o olho enfeitiçado e o impedia de penetrar mais fundo. ..ao passo que os espectadores verdadeiramente estéticos hão de me confirmar que, entre os efeitos peculiares da tragédia, o que há de mais notável é essa co-presença.”
Portanto, o “unheimlich” existe e provoca terror não porque identifica imaginário e realidade, abolindo dessa forma os limites do sujeito, como quer Freud e ainda Todorov, mas antes porque é o próprio resultado desse mundo já cindido, resultado de uma eventual identificação entre imaginário e realidade onde isso já não é possível.
O mundo moderno – e a psicanálise dentro dele – não permite mais que esse sujeito se dissipe nessa identificação, que participe dela integralmente e a experimente como algo natural. Como Jung explicou em seus trabalhos, o homem moderno não se individua, centralizando-se em equilíbrio dinâmico com seu inconsciente, dialogando de foram coerente com sua cultura e mundo, mas apenas se individualiza. Ao homem moderno, separado do outro, só lhe resta ser observador dessa identificação, que por vezes ainda emerge, só que agora como fenômeno sobrenatural ou assombração. É, assim, a delimitação desse sujeito, que permite que a eventual ausência de limites entre o real e o imaginário onde isso não é mais possível, seja aterradora. É essa identificação parcial, esporádica, entre o eu e o outro onde ela não deve mais se dar, e não a identificação total (como na mitologia), que proporciona a aparição do “unheimlich”. Só a um sujeito distinto e diferenciado do mundo que o rodeia podem ocorrer essas eventuais aparições assombrosas, só para o ser unilateral, excessivamente consciente e racional.


Bibliografia


Brunel, Pierre (org.). Dicionário de mitos literários. Editora UnB, Brasília, 1997
Calasans, Selma. O Fantástico. Ática, São Paulo, 1988.
Freud, Sigmund. “Volume XVII” Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Ímago, Rio de Janeiro, 1969.
Hoffman, E. T. A. “O Homem de Areia” em Contos Fantáticos. Ímago, Rio de Janeiro, ?
Hoffman, E. T. A. “O Vaso de Ouro” em Contos Fantáticos. Ímago, Rio de Janeiro, ?
Jung, Carl Gustav. A Natureza da Psique. Vozes, Rio de Janeiro, 1991
Rosenfeld, Anatol. Letras Germânicas. Unicamp, Campinas, ?
Todorov, T. Introdução à Literatura Fantástica. Símbolo, São Paulo, 1975
Neumann, Erich – História da Origem da Consciência. Cultrix, São Paulo.