segunda-feira, 30 de março de 2009

A Literatura e o Labirinto do Tempo
Por Micheliny Verunschk

Neste exato instante, enquanto Homero, aedo cego, de existência duvidosa, recita a Ilíada, ao som de sua cítara, Dante escreve um verso, o último, de um poema: l'amor che move il sole e l'altre stelle (1). Ainda nesse mesmo recorte de tempo, Fernando Pessoa, em Lisboa, sente dúvidas a respeito de "Tabacaria", um poeta ainda não nascido vê o primeiro poema de sua vida num livro holográfico que sua mãe encomendou numa dessas lojas virtuais, e Jorge Luis Borges, tão cego quanto Homero, recita "O Labirinto", cujo centro é ele, Minotauro de si mesmo, para deleite e encantamento de María Kodama.

Este é o tempo da literatura, que não é o tempo cíclico, dado pelas transformações da natureza, mas também não é o tempo histórico, com suas manifestações e contradições socioeconômicas e culturais. E tampouco o tempo dos sentimentos e afetos, o tempo interior que cada ser humano vivencia como seu. Articulado entre todos os tempos, o tempo da literatura se estende como um continuum arquitetado entre permanências e rupturas, construção e destruição, coexistência num presente sempre presentificado, no ontem, no agora, no depois, como cogita Santo Agostinho: "[...] é impróprio afirmar que os tempos são três: pretérito, presente e futuro. Mas talvez fosse próprio dizer que os tempos são três: presente das coisas passadas, presente das presentes, presente das futuras" (2).

Esse cruzamento entre as categorias de tempo extrapola o meramente cronológico e permite que obras (tanto de prosa quanto de poesia) e autores de diversas épocas dividam a mesma fatia espaço-temporal. De que modo, ou modos, isso é possível? Para Marcel Proust, autor de Em Busca do Tempo Perdido, por exemplo, os escritores de todas as épocas estão a ocupar-se da criação de uma única obra, que funcionaria como o elo com a contemporaneidade. Diz, em A Prisioneira: "[...] Eu explicava a Albertine que os grandes literatos nunca fizeram senão uma única obra, ou melhor, refrataram através de meios diversos uma mesma beleza que trazem ao mundo" (3).

Bergson, filósofo francês, denomina esse elo de durée (duração), uma sucessão heterogênea de estados da consciência em contínua ampliação ou enriquecimento, um fluxo criador que, entre memória e realidade, está sempre em movimento e apontando para o devir. Para ele, a durée está na base do processo evolutivo como um impulso vital de onde todas as coisas surgem e se transformam pelo primado da força e da beleza. Esse processo evolutivo promove um retorno à natureza e à relação de justiça com o mundo muito próximo da "aliança com as coisas" de que fala a poeta portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen:

"A coisa mais antiga de que me lembro é dum quarto em frente do mar dentro do qual estava, pousada em cima duma mesa, uma maçã enorme e vermelha. [...] Não era nada de fantástico, não era nada de imaginário: era a própria presença do real que eu descobria. [...] Em Homero reconheci essa felicidade nua e inteira, esse esplendor da presença das coisas. [...] Sempre a poesia foi para mim uma perseguição do real. Um poema foi sempre um círculo traçado à roda duma coisa, um círculo onde o pássaro do real fica preso" (4).

Podemos afirmar que a literatura, como arte que agrega prosa e poesia, é, ela mesma, um work in progress que, à medida que se faz, prepara seus próprios autores e, mais, inventa, a seu modo e conforme suas exigências, seus próprios leitores. Estender-se, alongar-se, deslocar-se e transtornar-se pelo tempo é um jogo de criação. O espaço em que a literatura habita é a geografia do tempo e, desse modo, a vontade mais profunda não é outra senão o desejo de eternidade, com tudo de provisório que, é claro, cabe nessa palavra.

Neste exato instante, enquanto Jorge Luis Borges, aedo cego, de existência duvidosa, recita um verso de A Divina Comédia, ao som de sua cítara, Fernando Pessoa ajuda um poeta ainda não nascido a escrever um verso de seu primeiro poema: l'amor che move il sole e l'altre stelle. Ainda nesse mesmo recorte de tempo, Dante, em Lisboa, sente dúvidas a respeito de "Tabacaria" e Homero, tão cego quanto Borges, recita um poema, cujo centro é ele, Minotauro de si mesmo, para deleite e encantamento de María Kodama, perdida e encontrada para sempre no labirinto do tempo.

Notas
1. "O amor que move o sol e as outras estrelas."
2. Santo Agostinho. Confissões. Petrópolis: Vozes, 1990, p. 284.
3. PROUST, Marcel. Em Busca do Tempo Perdido. In: BERGEZ, D. et al. Métodos Críticos para a Análise Literária. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p.101.
4 ARÊAS, Vilma (org.). Poemas Escolhidos. São Paulo: Cia. das Letras, 2004, p. 155

Fonte: http://www.itaucultural.org.br/index.cfm?cd_pagina=2720&cd_materia=65

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