segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Tolerância e enriquecimento cultural

Quando se fala em preservar o planeta, normalmente só se pensa em ecologia, e não também na paz entre os homens. Até parece que a globalização resolveu de vez esse problema, ao fazer as diferentes culturas humanas se comunicarem entre si, por meio da mais moderna rede de comunicação que temos. Mas será mesmo que dá para acreditar que a globalização resolveu o problema da distância entre os mais variados povos do mundo? Para início de conversa, ela inclui mesmo todos os povos nesta comunhão? O objetivo da globalização é econômico, só apoiando a cultura quando esta é rentável. E a paz entre os seres humanos é outra frente pela qual devemos pensar em preservar o planeta, ao procurar criar mais pessoas dispostas a ser tolerantes com diferenças.

Vi este ano dois filmes que mostram que ainda tem muito chão para aprendermos mais esta lição, mas que também mostram caminhos possíveis para ela. Um deles, que mostra um primeiro estágio de se conviver com uma cultura diferente e mergulhar nela, é "Tempos de Paz", de Daniel Filho. O personagem de Dan Stubalch é um polonês que faz questão de aprender a língua portuguesa, e chega a se encantar com a poesia brasileira. Pensa que os brasileiros seriam puros demais para saber o que é o aniquilamento causado pela guerra, a ponto de provavelmente nem ter palavras que abordassem esse assunto, porque a violência não existiria aqui. Ele é obrigado a rever esse conceito quando, ao chegar ao Rio de Janeiro, fugido da Segunda Guerra Mundial, encontra um truculento oficial (Tony Ramos), xará seu, que narra com naturalidade cenas de tortura que infligiu a várias pessoas que de uma forma ou de outra foram tidas como inimigas, e sempre deixando claro que "só cumpria ordens". O próprio polonês tem que vencer a ignorância da autoridade para não ter que voltar para a Polônia arrasada pela guerra, e acaba lançando mão da sua arte para isso, pois ele era ator. Mesmo ignorantão, o Segismundo brasileiro se comove, uma personificação da aceitação que muitos intelectuais europeus, que inclusive aparecem no final, tiveram no nosso país. E essas pessoas acabaram tendo influência sobre a nossa cultura. Lembro de três exemplos: Ziembinski, Paulo Rónai e Otto Maria Carpeaux.

O segundo filme já focaliza o elemento estrangeiro instalado no povo que o acolheu. "Homens e Deuses", do diretor francês Xavier Beauvois, se baseia em fatos reais para contar a história de um grupo de monges franceses na Argélia que morreram na mão de terroristas que, diante do caos político em que estava o país, estavam querendo fazer revolução para tomá-lo. O grande dilema desses monges era, primeiro, aceitar ou não ficar sob a proteção do governo corrupto e, depois, permanecer no país ou voltar para a França. Mas a cena exemplar da tolerância cultural dos religiosos católicos (embora haja outras) é quando os terroristas estão prestes a invadir o mosteiro e o líder dos monges, frei Christian, se propõe a convencê-los a não fazer isso. No diálogo, ao explicar que justamente aquela era a noite de Natal, ele repete algumas vezes, referindo-se a Jesus, "Issä, o Príncipe da Paz", que é como os muçulmanos nomeiam Jesus. Ou seja, teve a sensibilidade de traduzir sua fé para a língua deles, ainda que só visando ao claro objetivo da não-invasão. Quando o líder dos invasores finalmente entende de que data se está falando, ele vira-se para os companheiros e, ao repetir em árabe o que lhe disse o frei, demonstra conhecer a importância do Natal para os seguidores de Cristo. Em sinal de respeito, resolve não invadir o mosteiro, pelo menos não naquela noite, pede desculpas e ainda estende a mão para frei Christian, que a aperta depois de hesitar um pouco.

É sublime o interesse em conhecer a cultura diferente e o respeito a ela, que cada um destes filmes mostra de um jeito. Trata-se de uma grande oportunidade, no mínimo, de enriquecimento pessoal e intelectual, tanto para pessoas como para países. Mas a tolerância também envolve desafios e até sacrifícios. No primeiro caso, o polonês precisou modificar uma idéia linda que tinha sobre o povo que o acolhia, e ainda lutar contra uma hostilidade para poder ficar, hostilidade com a qual ele não contava. Não chega a ser um drama, pela maneira como esse personagem encara e vence essa realidade. Mas creio que a perda dessa inocência, até cômoda em certos casos, de se pensar só bem ou só mal de uma determinada cultura, é um dos motivos que faz muita gente ter medo e fugir do que é diferente.

No segundo, a situação é mais trágica. É lógico que os monges não podem concordar com a forma de lutar do grupo terrorista, que chegou ao ponto de matar pessoas em plena luz do dia, à vista de todos. No entanto, devido a preceitos religiosos, também não podia concordar com a execução do líder dos terroristas e com a profanação do cadáver feita pela multidão indignada. Sem contar que algumas vezes sentiram a rejeição de alguns argelinos, por eles pertencerem ao povo que no passado os colonizou e empobreceu. Esses monges, com a exceção de um, acabaram mortos pelos fanáticos terroristas - mas, antes disso, frei Christian teve a oportunidade de deixar claro que isso vinha de uma parte dos muçulmanos, não da cultura muçulmana em si, na qual todos eles encontravam até muito sentido. Lamentável que deles só restou o exemplo, não é? Talvez se os assassinos tivessem usado da mesma humanidade que as vítimas usaram com eles...

É aquela velha história: não é fácil, mas vale a pena. Prêmio: um mundo sem guerras.


***


Aviso aos meus leitores que vou tirar férias em dezembro e janeiro. Volto na primeira semana de fevereiro. Obrigada a todos que me acompanharam neste ano. Feliz Natal e um próspero Ano Novo!

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

O problema do machismo, de novo

O homem se desenvolveu de diferentes modos no seu espalhamento pelo globo, e mesmo entre povos vizinhos as maneiras de pensar podem ter diferenças muito grandes. Cada sociedade, ao tentar simplesmente sobreviver no ambiente em que se fixou, encontrou problemas, solucionou-os (ou não), passou por uma história com altos e baixos que pode explicar bastante sobre o caráter do seu povo, teve que enfrentar invasores, desenvolveu uma fé ou foi conquistado por uma fé alheia, desenvolveu ou não um sistema de escrita, quis conquistar todos os povos do mundo ou apenas lutou o dia-a-dia para sobreviver, foi criando uma cultura que sobrevive de alguma forma nos seus descendentes atuais e mesmo nos povos invasores ou conquistados (porque a cultura e seus efeitos nunca são neutros, mesmo que essa cultura original tenha sido extinta porque seus praticantes foram todos eliminados fisicamente). E é maravilhoso estudar culturas diferentes e perceber nelas originalidades, coisas que de repente nunca haviam passado pela cabeça. Ou novos modos de dizer a mesma coisa, ou de praticar a mesma coisa.
No entanto, claro, não devemos esquecer que todas as culturas são produtos criados pelo homem. Portanto, nenhuma está livre de cometer erros, e alguns bem trágicos ou pelo menos dramáticos. Hoje estou me referindo a uma notícia da semana passada, em que uma mulher de um país muçulmano foi estuprada, e por isso foi presa – e o pior é que a pena alternativa seria ela casar com o agressor, a quem não aconteceu nada judicialmente.
Esse fato (e esse é um fato que chegou à mídia mundial; portanto, podemos imaginar o tanto de outros iguais ou piores) reflete uma concepção tremendamente errada da mulher, uma concepção que, não faz muito tempo, era oficial no Ocidente também, e hoje sobrevive em homens que batem nas companheiras ou até as matam. O fato de não ter acontecido nada legalmente com o agressor, de ele ter sido declarado inocente, enquanto que a vítima dele foi presa, diz o seguinte: se a mulher é violentada, a culpa é dela, e não do bruto que a violentou. Quem mandou seduzi-lo, ou seja, quem mandou se comportar como uma sem-vergonha na frente dele? Ele é homem, puxa vida (aliás, que desculpa mais esfarrapada, não é não?). Agora, não se queixe. Até porque você estava gostando, se não fez nada na hora para impedir. No fundo, isso aí é o medo que o homem tem da mulher, por saber, intuitivamente muitas vezes, que ela é mais forte do que ele. Em muitas culturas nômades, era a mulher a responsável por carregar as casas do grupo nas costas – motivo: elas eram mais fortes, e o homem precisava ter as mãos livres para proteger o bando. Em outras culturas, tentou-se castrar a sexualidade da mulher, para ela não seduzir o homem (porque mulher é um bicho terrível mesmo) e assim o desviar do bom caminho. E essas providências foram desde cobrir completamente o corpo da mulher, algo que dominou tanto no Ocidente como no Oriente, não instruí-la a respeito de sexo, até cortar-lhe o clitóris, para que ela não sentisse prazer no ato sexual. E foi esta concepção que novamente vigorou quando aquele policial canadense disse para uma estudante da universidade onde ele foi dar uma palestra sobre estupro que ela foi culpada pela violência que sofreu, por “usar roupas de vadia”, o que acabou dando origem à “Marcha das Vadias” em todo o mundo, mais para o começo deste ano.
O grave de tudo isso é que, mesmo após a revolução feminina das décadas passadas (ainda que o feminismo no Ocidente e no Oriente não esteja andando nos mesmos passos, e nem nos mesmos modos), a presença desta concepção vem nos dizer que alguns homens continuam achando que são os únicos donos do planeta, portanto têm direito a tudo, inclusive violentar mulheres pelas quais simplesmente se sintam atraídos, tenham feito elas algo para que isso acontecesse ou não. Ou seja, é melhor a mulher se comportar, ou sofrerá as conseqüências. Esse "se comportar" significa se acomodar às regras que os homens criam para ela, abrindo mão de qualquer identidade própria e única. Assim, ela passa a ser uma coisa que serve apenas para desempenhar as funções que os homens reservam para ela. E mesmo assim a proteção contra a violência não é garantida, porque, ao mesmo tempo em que ela se anula, ele cada vez mais pensa que tem direito a tudo para atender ao menor dos seus caprichos.

E, ao pensar que a vítima é na verdade culpada da violência que sofreu, não se pensa no sofrimento moral dela, que é mais terrível que o sofrimento físico – afinal, as marcas no corpo desaparecem depois de algum tempo. Mas as marcas que ficam na alma vão durar para sempre, ainda que de forma mais discreta se a mulher (ou o homem vítima de estupro) conseguir se tratar nesse sentido. E o estuprador deve ser isolado do mundo, mas também passar pelas mãos de um psicólogo para descobrir por que ele não conseguiu (ou não consegue) se segurar, a fim de que não repita a violência com outras pessoas. Quando é que vamos começar a tratar as pessoas como gente?

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Cruz e Sousa e o Dia da Consciência Negra

Apesar de ainda ter poucos Dias da Consciência Negra no currículo (e de eles só terem se intensificado de uns anos para cá), já tenho o meu Dia da Consciência Negra inesquecível. Foi o do ano passado, que teve de especial o fato de eu ter podido ver, na Cultura, o filme "Cruz e Sousa - O poeta do Desterro", do curitibano Sylvio Back, que rapidamente se converteu, para mim, num dos meus filmes brasileiros favoritos.

É um filme que dá à palavra a mesma importância que dá à imagem. O que é, ou deveria ser, até óbvio, em se tratando de um filme sobre um poeta. Mas que poeta! Cruz e Sousa foi um simbolista, ou seja, sugeria mais do que realmente dizia - dele já falou um professor meu, uma vez: "Se você puser numa feira uma barraca de obras simbolistas e outra com outros tipos de obras, a barraca dos simbolistas quase não vai ter fregueses. Mas os poucos fregueses vão pegar os livros e não vão soltar mais". Foi o meu caso, tanto que Cruz e Sousa se converteu no meu poeta brasileiro predileto. Conheci-o durante as aulas de literatura do Ensino Médio, e comecei a lê-lo por curiosidade. Mesmo não entendendo muita coisa nas primeiras leituras, algo nele me agarrou para sempre.

Se extrair imagens filmáveis das palavras de qualquer grande escritor é uma tarefa complicadíssima, fazer isso com Cruz e Sousa é mais difícil ainda. Mas Sylvio Back consegue. Começa que só utiliza no filme palavras escritas por Cruz e Sousa, em poemas e cartas. Para fazer os diálogos, coloca os amigos do poeta lendo essas palavras. Além de usar monólogos interiores, imagens como metáforas, também estiliza cuidadosamente as imagens que acompanham as palavras que vão sendo ditas - um dos melhores exemplos é o da musa ruiva que declama com o poeta numa cena. O fundamental dessa estética é mostrar o mundo como Cruz e Sousa o via, afinal ele passou a vida procurando e descrevendo a beleza nas coisas mais insignificantes, ou pelo menos de fontes não tão óbvias, percepção esta fruto de uma visão mais sofisticada da realidade. Aí está como inteligência e vontade de realizar podem operar milagres, como traduzir palavras de um grande poeta em imagens na tela do cinema! Produtores historicamente com mais recursos para filmar não foram capazes de ousar desta forma, se atendo sempre à velha história clichê de a inspiração do poeta voltar por meio de uma paixão repentina deste. Saí deste filme leve, com vontade de ter feito parte do mundo de Cruz e Sousa, e orgulhosa porque tudo ali era brasileiro!

Mas é claro que o filme não poderia se furtar a mostrar também os problemas que ele enfrentou, devido à inveja, incompreensão e ao preconceito, pois, para quem não sabe, ele era negro. Perdeu um cargo de juiz em Santa Catarina, apesar de ter mostrado aptidão, por causa da cor. Morreu pobre e obscuro porque, não sendo reconhecido como escritor, não conseguiu entrar para a ABL (o próprio mulato Machado de Assis recusou o nome dele), e não pôde ganhar dinheiro com a literatura. Se não fossem os fiéis amigos reclamar o corpo dele para enterrá-lo condignamente, poderia ter sido enterrado como indigente. Mas, como não poderia deixar de ser, veio num vagão de trem de segunda classe, usado para transportar gado.

Na própria poesia dele, como na literatura de alguns intelectuais negros e mulatos da época, vê-se a divisão entre a frustração de não ter nascido branco e o orgulho raivoso de ser negro e poder lutar para vencer a estupidez da discriminação. Do primeiro segmento, é significativa a cena em que se repete várias vezes a frase: "Como ser artista com esta cor!". Do segundo, reproduzo o poema "Escravocratas", agressivo e irônico:


Escravocratas!

Oh! trânsfugas do bem que sob o manto régio
Manhosos, agachados - bem como um crocodilo,
Viveis sensualmente à "luz" dum privilégio
Na "pose" bestial dum cágado tranqüilo.
Escravocratas!
Eu rio-me de vós e cravo-vos as setas
Ardentes do olhar – formando uma vergasta
Dos raios mil do sol, das iras dos poetas,
E vibro-vos à espinha – enquanto o grande basta
O basta gigantesco, imenso, extraordinário –
Da branca consciência – o rútilo sacrário
No tímpano do ouvido – audaz me não soar.
Escravocratas!
Eu quero em rude verso altivo adamastórico,
Vermelho, colossal, d’estrépito, gongórico,
Castrar-vos como um touro – ouvindo-vos urrar!
Castrar-vos como um touro – ouvindo-vos urrar!
Castrar-vos como um touro – ouvindo-vos urrar!

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Sem inspiração

Carlos Henrique Furtado é um dos meus mestres, para quem envio cartas, e de quem recebo também. Oportunamente, vou dando mais informações sobre ele, ao longo das crônicas. Por enquanto, fiquem com o trecho de uma carta dele, que recebi esta semana e achei interessante:


Estou sem inspiração, mas escrevo por princípio. Penso que todo aquele que se intitula escritor deveria fazer um esforço para escrever um pouco todo dia. Ou, pelo menos, isso vale para mim.


Portanto, aqui estou eu, enfileirando letras, palavras e frases. Ao correr da pena, como diria o José de Alencar (o escritor do século XIX, não o vice-presidente do Lula, que é José Alencar), que para mim é uma das melhores definições de crônica. Mas também sem ter idéia do que vai resultar disto aqui.


A escrita já é, para mim, um vício. Mesmo sem ter nada para escrever, escrevo qualquer coisa, todo dia. Escrevo e guardo, não consigo jogar fora, como fazem outros escritores. Fui me acostumando a escrever todo dia, porque muitas vezes é tentador deixar um pensamento só na cabeça, sem tentar expressá-lo. Ou então, é um pensamento que passa tão rápido, que é até frustrante tentar capturá-lo, afinal a própria natureza dele é ser fugidio, enquanto que a natureza das palavras é fixar algo por muito tempo, se não para sempre. Em outras palavras, às vezes esse antagonismo não funciona bem. No entanto, às vezes também pode se tratar de um pensamento tão bobo, que nem vale a pena guardá-lo num registro, ou pelo menos é assim no momento da passagem dele.


Contudo, este é um dos desafios da literatura, talvez mesmo o mais elementar, embora provavelmente vá acompanhar o escritor ao túmulo (o que acontece, aliás, com todos os desafios da literatura). Lutar contra a preguiça, o comodismo e seja lá o que mais for, para tentar escrever. Se não comportasse este e outros desafios, a literatura não seria mais do que uma prática de e para diletantes. Quem ouve o chamado da literatura e se rende a ela até pode ser um escravo feliz desta senhora, como escreveu Mario Vargas Llosa. Mas o seu penar acontece escondido, somente nos bastidores, e muitas vezes não é visível também por ser apenas mental. Procurar escrever todo dia é o heroísmo de cada dia, embora isso não esteja à disposição da vista do mundo. Foi Charles Baudelaire quem definiu maravilhosamente bem: "Eu ponho-me a treinar (ou lutar, dependendo da tradução) em minha estranha esgrima".


Só esta carta já dá uma crônica, não é verdade? Por isso a publiquei aqui, num dia em que estava sem inspiração.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Criticar os cantores, não os fãs

Vi, semana passada, um texto do Regis Tadeu, comentador de música no site Yahoo!, sobre a suposta separação da dupla Zezé di Camargo e Luciano. Até tenho uns textos dele guardados, embora ache que ele seja por demais pessimista - quando quer ferrar com alguém, ferra mesmo, sem nenhuma piedade, e leva os fãs junto. Foi o caso desse texto sobre a dupla. É habitual que ele invista contra ídolos adolescentes, dando a entender que as meninas fãs deles, se pensassem, não cultuariam aquela pessoa.

Para início de conversa, e pela minha concepção, creio que a maior parte do público de Zezé di Camargo e Luciano já deve ter mais ou menos a idade deles, ou seja, na média dos quarenta e poucos. Por exemplo, quando noticiaram essa separação e perguntaram a opinião dos fãs, na TV quem aparecia era gente dessa faixa etária, se não mais velha. Não consigo enxergar pessoas de 15 anos gostando deles, embora com certeza deva existir uma exceção nesse sentido, sempre existe exceção. Ok. Mas o que realmente me deixou incomodada nesse texto foi a virulência com que atacou os fãs da dupla, simplesmente por serem fãs da dupla, dizendo que eles não têm o hábito de pensar, o que se nota pelos coraçõezinhos que fazem com as mãos nos shows, e que não têm noção de romantismo nem de poesia, a poesia do próprio cancioneiro brasileiro, que realmente é muito rico de bons textos.

Ao contrário do que pode parecer, não sou fã deles, embora tenha gostado do filme e goste de algumas músicas, mais antigas - como "É o amor", que foi a maior vítima de Regis Tadeu nesse artigo. É, aliás, uma das poucas dos dois que acho que tem alguma poesia, e olhe que ando investigando compositores como Chico Buarque, Caetano Veloso, Raul Seixas, entre outros. Acho que o grande problema deles é que eles não cantam, apenas gritam. Até dá para entender que, quando se lançaram na carreira musical, foram sem muito preparo, porque não tinham condições de arcar com isso, mas agora quem disse que não poderiam fazer isso? Na minha opinião, quem é cantor tem que continuamente estar fazendo aula de canto, técnica vocal, essas coisas. Aprender e reaprender a usar o instrumento de trabalho, porque, ironicamente, quem é perito em uma área sabe que deve estar sempre estudando para se aprimorar, porque não sabe, nem nunca vai saber, tudo relacionado àquela área. Se a pessoa não tem essa humildade, ela vai acabar se limitando, e logo vai deixar de ser eficiente naquela atividade. Mesmo que, tendo feito um nome, continue sendo uma referência importante.

Repare que, para criticar a dupla, não precisei insultar também os fãs. Não vejo sentido nisso, porque o gosto por alguma coisa é composto por uma parte objetiva e outra subjetiva. A objetiva, pode-se dizer, é aquela que é medida pelas referências culturais, obtidas através da educação, portanto que são medidas estatisticamente. Por essa via, posso afirmar que muita gente que gosta de Zezé di Camargo e Luciano não tem outras referências de ritmos e cantores, o que na verdade é mais motivo de indignação contra a falta da educação de qualidade para todos do que contra as pessoas que não têm esse tipo de referência. É claro que existem os fãs desmiolados, principalmente entre meninas adolescentes, e esse tipo de pessoa é insuportável, mas não se pode generalizar que todos os fãs de um cantor sejam assim. No entanto, imaginando uma criança que entre na escola agora, e que se Deus quiser vai ter a sorte de pegar aulas de música já regulamentadas (já existe a lei tornando isso obrigatório, mas ainda não se sabe como essas aulas vão funcionar, por isso que elas ainda não entraram em vigor em todo o país), ou seja, que vai ser minimamente educada musicalmente, vai saber que existem outros tipos de música além das que seus pais gostam (que é a primeira referência para a criança) e vai poder escolher o que vai ouvir e saber argumentar por que gosta ou não gosta de algo. Isso é ótimo. No entanto, não necessariamente vai deixar de ouvir Zezé di Camargo e Luciano por causa disso. Eles podem ter sido a trilha sonora da sua infância, e ela pode prosseguir escutando-a, ou não. Mesmo sabendo, e dizendo, que eles não são a melhor referência dentro da música brasileira, ou da música sertaneja. Pode-se culpar alguém por causa dessa subjetividade? Claro que não. O único remédio é, realmente, tapar o ouvido, caso o gosto não seja o mesmo.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

A última crônica, Fernando Sabino

Presente, my dears...
Lembram de uma aula em que a Monica Berger comentou sobre esta crônica do Fernando Sabino? Pois finalmente a encontrei! É linda! Vejam:

A Última Crônica
Fernando Sabino
A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica. Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome. Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho -- um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular. A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim. São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: "parabéns pra você, parabéns pra você..." Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura -- ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido -- vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso. Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso. Texto extraído do livro "A Companheira de Viagem", Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1965, pág. 174.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Ode à solidão

Estes dias vi, pela Internet, a nova propaganda da Revista Superinteressante, revista que me acompanhou, se não na minha infância, pelo menos na minha adolescência, e à qual devo muitíssimo. E a propaganda estava muito bem feita, traduzia bem o espírito da revista, ainda que comece com uma verdade inquietante: todas as regras que você segue hoje vão mudar amanhã. Porque a ciência está sempre se reformulando.



No entanto, há alguns meses tive uma decepção com essa revista, e ela foi reavivada pela propaganda. Não lembro em que mês, a matéria de capa dizia que quanto mais amigos uma pessoa tiver, mais feliz ela será. Claro que fiz questão de ler, e fiquei espantada com o tom infantil da reportagem, que dizia que se você tiver no mínimo quatro amigos você já será beneficiado com essa felicidade, contendo até mesmo um infográfico apresentando uma escala de quantidade e efeitos psicológicos. Até um limite, pois a própria revista reconheceu que existe um número-limite de amigos que uma pessoa pode ter ao longo da vida, mesmo estando conectada em várias redes sociais. Isto foi mencionado na propaganda, durante alguns segundos. E, adivinhe só, quem vive sozinho está condenado à infelicidade, ao alcoolismo, à depressão. Automaticamente. (Verdade seja dita que esta outra parte não estava escrita na revista, nem dita na propaganda, andei vendo em reportagens publicadas em sites como Yahoo! e MSN). Só concordo com o argumento de que ter alguém por perto incentiva a pessoa a cuidar melhor da saúde e da aparência.


A primeira questão de tudo: o que é amizade? Será que alguém sabe responder quando é que uma pessoa passa de simples conhecida a amiga? Pessoalmente, acho que as redes sociais banalizaram a palavra "amigo", porque muitas aceitações que passam a ser conhecidas com esse nome são pessoas que aparecem do nada e pedem para ser adicionadas - algumas vezes são completamente desconhecidas, outras são pessoas com as quais se convive, mas sem muito contato, e que de repente passam a compartilhar fotos e intimidades do "adicionador". Não é estranho? E simplesmente se aceita, porque é fácil, é só apertar um botão. Ou até para contabilizar mais amigos. Fico pensando se amigos são garrafas de felicidade que podemos beber para então ficar felizes.



O que estou tentando dizer aqui é que, por estas vias, se valoriza muito a quantidade de amigos, que é a dimensão que pode ser facilmente exibida a quem quer que seja, inclusive ao próprio ego, e não a qualidade, que é mais difícil de obter e de enxergar. Lembro de um provérbio chinês que diz que, para se ter um amigo, é necessário comer dois sacos de sal, querendo significar que leva muito tempo para fazer de alguém um amigo. O que será que se esconde por trás dessa obsessão pela quantidade, mesmo em detrimento da qualidade?



Suponho que o medo da solidão e, por consqüência, da infelicidade. Como se ter uma multidão ao redor impedisse sempre alguém de se sentir solitário, mesmo em meio a ela, por faltar integração. As relações humanas são muito mais complexas do que estamos acostumados a compreender. Em contrapartida, nem sempre alguém solitário é infeliz. E se foi a pessoa quem escolheu esse tipo de vida? Não consigo imaginar gente como Dalton Trevisan, Jack Nicholson, Selton Mello ou Chico Buarque infelizes, estando livres para fazer o que quiserem e voltar à hora que bem entenderem para casa, só procurando companhia quando necessitam dela. Guy de Maupassant, outro solitário desse naipe e um dos meus contistas favoritos, escreveu muitas histórias cujo protagonista tinha exatamente esse estilo de vida - ainda que acabassem enlouquecendo, porque só tinham compromisso com os próprios prazeres (e isso incluía não fazer nada de útil na vida), creio que o escritor também gostava dessa liberdade, devido ao modo como a descreve. E o detalhe é que Maupassant tinha grandes amigos, a começar por Flaubert, seu mestre, mas também precisava dessa solidão e liberdade, inclusive para trabalhar.




Pode até ser um modo de vida interessante, melhor do que se cercar de gente só para não se sentir só, e mesmo assim se sentir, inclusive suportando uma relação insustentável por causa disso. Talvez seja o melhor modo de vida para estas pessoas mencionadas acima porque é o que melhor se ajusta à personalidade delas. Será que alguém já parou para pensar que existem certos tipos de personalidade que preferem a solidão? Será que isso a ciência explica?


Errata: Na crônica da semana passada, o nome da paróquia localizada no bairro Ganchinho, que realmente existe, é "Nossa Senhora dos Migrantes". Por uma letra...

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Dona Amélia

"É curioso que haja tanto respeito pelos mortos e tão pouco pelos vivos. (...) Claro! É fácil ser justo e compreensivo para com os que morrem. Basta enterrá-los... e eles nos deixam em paz. Agora, é difícil compreender e ajudar os vivos vinte e quatro horas por dia, todos os dias do ano, ano após ano..." (Érico Veríssimo)

Ao contrário do que pode parecer, esta não é uma simples epígrafe. É um trecho do livro que D. Amélia está lendo agora, "Incidente em Antares", que está adorando, por sinal. Quem indicou e emprestou foi a melhor amiga, D. Terezinha, para superar a perda recente do filho, rapaz de 24 anos, morto em um assalto, por ter reagido. O mais triste é que o assaltante era um menino da vizinhança, uns 10 anos mais novo, conhecido e sabidamente viciado em drogas.

D. Amélia Maria Cardoso é uma senhora de 63 anos, espécie de D. Benta na aparência e no jeito tímido, que mora na ocupação Professora Izabel Prima de Oliveira, localizada no bairro do Ganchinho, em Curitiba. Mora lá desde 1992, ano da ocupação. Na época, tudo o que tinha era os dois filhos mais velhos pequenos. Saiu do Xaxim para fugir do aluguel abusivo - a situação era tal que ou pagava aluguel ou comprava comida. Pouco antes tinha se separado do marido, alcoólatra.

Vida difícil. Moraram os três numa barraca durante 18 dias, até ela, com a ajuda de amigos, conseguir erguer uma casinha de madeira, que foi ajeitando aos poucos. Algum tempo depois, conforme combinado antes das 120 famílias se transferirem do Xaxim para o Ganchinho, houve um sorteio, e D. Amélia e os filhos foram realocados para uma casa melhor. Pouco depois, conheceu um homem, seu Miguel, seu segundo marido e pai dos dois filhos mais novos, que já morreu. Quando a Cohab começou a regularizar a situação entre os ocupantes e os donos das terras ocupadas, ela e todos os outros passaram a pagar aluguel até conseguirem adquirir os imóveis nos quais já estavam morando. Com os preços um pouco mais praticáveis, passaram anos pagando, porém quase todos já conseguiram. Alguns terminaram o pagamento e venderam a casa, mas, segundo D. Amélia, a maioria continua lá. Por tudo isso, ela se diz agradecida a Deus e a Nossa Senhora dos Imigrantes, a padroeira da bela igreja do local e de todos os ocupantes daqueles bairros - Ganchinho, Sítio Cercado e Bairro Novo, porque todas essas pessoas, pelo menos as adultas, vieram de outros lugares que não Curitiba. São todos "imigrantes" (ou "migrantes", de acordo com a definição da Geografia).

D. Amélia diz que "só por Deus" conseguiu agüentar todas estas provações, mas não acredita em vida após a morte, mesmo sendo católica por convicção. O inferno é aqui mesmo, e a morte é o fim de tudo. Não existe céu nem purgatório. O filho, portanto, já parou de sofrer. Apesar disto, ela me lê três frases que copiou do livro de Érico Veríssimo: "Às vezes neste mundo é preciso mais coragem para continuar vivendo do que para morrer. (...) Não percas a fé no futuro. Quem foi que escreveu que o pior pecado é o pecado contra a esperança?" O romance é sobre sete mortos que se levantam dos túmulos para esperar um enterro digno, no meio de uma greve dos coveiros da cidade de Antares. Estas frases fazem parte do trecho em que um desses mortos vai visitar a esposa grávida, um dos favoritos de D. Amélia. Ela dá uma risadinha e sussurra: "Meu filho podia fazer isso comigo, não?" Mas o pensamento travesso só dura um momento, de repente ela está de volta à sua expressão serena com picos de alegria modesta, característica de pessoas que passaram pelos mesmos problemas que ela.

Mas há as alegrias também, claro. A filha mais velha trabalha num comércio local, e vai casar em dezembro, "com um rapaz bom e trabalhador". Os dois mais novos, gêmeos, estão fazendo o Ensino Médio, na mesma sala. São um menino e uma menina. Logo que acabarem a escola vão arrumar um emprego, até estão ansiosos para isso, querem ajudar a mãe. Todos os filhos são muito ajuizados, muito bonzinhos. D. Amélia se aposentou como servente de um banco faz alguns anos, e recebe o Bolsa-Família para complementar a renda, além de uma parte do salário da filha que trabalha (e também recebia do filho que morreu).

Quando ela morrer, sabe que só deixará para os filhos a casa que já é deles e o estudo. Enfim, como se conforma D. Amélia, na vida tem coisas ruins, mas também tem muita coisa boa. A melhor são os filhos que Deus lhe deu: Pedro, 24; Raquel, 22; Graciosa e Henrique, 16.

Nota: As pessoas citadas não existem. Esta crônica foi feita misturando-se fatos reais com imaginação pura da autora. É verdade que os bairros Ganchinho, Sítio Cercado e Bairro Novo foram formados por ocupações, e que uma destas saiu do Xaxim, e que os ocupantes tiveram que pagar aluguel aos donos da terra, por intermédio da COHAB. E em algumas ocupações houve sorteio para realocar as pessoas. Existe a Igreja de Nossa Senhora dos Imigrantes, pelo motivo já apontado, mas a "ocupação Professora Izabel Prima de Oliveira" não existe, este é apenas o nome de uma rua do bairro Ganchinho. Esta crônica é uma brincadeira, um treinamento para o trabalho de conclusão de curso da autora.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Peço perdão aos cineastas

Nestes últimos dias, tenho sofrido com duas pragas que podem andar juntas: sapatos que machucam e atrasos. Para o meu trabalho de conclusão de curso, tenho percorrido Curitiba entrevistando cineastas, entre outras pessoas, o que está sendo um grande privilégio. Contudo, não tenho ido de tênis, que seria o recomendável para longas caminhadas, porque está calor. Gosto quando faz esse tempo, mas esta é, também, provavelmente a época em que mais sofro com sapatos.

Para começar, durante a maior parte do ano acabo usando tênis, que é uma invenção maravilhosa para quem gosta de ou precisa caminhar tanto, e acabo me desacostumando com sandálias e chinelos de dedo - preciso dar um tempo para que o vão entre os dedos não saia machucado com a hastezinha que separa o dedão dos outros dedos, por exemplo. Mas o problema não é só esse, claro, seria bom demais se fosse. Um sapato raspa no meu calcanhar, outro faz ferida na região do osso, outro oprime os dedos, o dorso do pé ou o calcanhar, e por aí vai. Às vezes, um pé está muito bem num sapato, mas o outro não, porque tenho alguns milímetros a mais em um deles (não lembro qual), o que é normal, conforme atesta a minha mãe, que é formada em Podologia. E, o problema dos problemas, tenho a maior ojeriza a sapatos de salto, embora socialmente se exija das mulheres pelo menos a adaptação a saltos anabela (que também me doem, ao menos nos primeiros dias de uso).

Lembro que, numa determinada época da minha vida, mais impaciente com essas dores, chegava a levar um sapato alternativo na mochila, para quando elas começassem. Estando eu uma vez com meu pai num ponto de ônibus, ele me viu trocando um calçado pelo outro e começou a rir: "Mulher é um bicho complicado, mesmo". A minha resposta: "Eu apenas estou escolhendo a dor que vou sentir". Porque um daqueles me apertava os dedos, e o outro me apertava, se não me engano, o calcanhar. Não lembro qual deles eu troquei.

Por tudo isso, não faz sentido para mim aquelas histórias, que volta e meia aparecem na mídia, de mulheres que colecionam sapatos e são loucas por sapatos de salto. Eu não me vejo assim, falando como mulher. Reconheço que são bonitos, até paro para olhar em vitrines, mas desanimo ao constatar que a maioria dos mais elegantes é de salto alto, e ainda por cima agulha! É um custo encontrar sandálias baixas. Todos pensam e agem como se todas as mulheres usassem saltos o tempo todo, quando eu mesma conheço várias que não gostam. Por que não mostrá-las ao lado das doentes por salto alto? Seria uma outra imagem da mulher na mídia. E será que não existem mulheres que não prefeririam encomendar sapatos a um sapateiro, que faria sob medida para elas? Eu sou uma dessas.

Para completar, muitas vezes ando demais porque me perco por esta cidade, apesar de morar aqui desde que nasci, e às vezes isso acontece mesmo indo para um lugar em que eu ia bastante antes e depois parei de ir. Parece que a minha memória deleta a maneira de chegar lá, e aí só batendo pernas para achar, porque, também ao contrário da maioria das mulheres, não gosto de pedir informações. Me guio por pontos de referência, nomes de ruas e os mapas dos pontos de ônibus. Mas, com tudo isso, não tenho primado pela pontualidade. Por isso, peço perdão aos cineastas, publicamente. Não quero atrapalhar o trabalho de vocês.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Androginia

Ao pegar um ônibus, a princípio nem olhei para a cara do cobrador. Apenas passei, sentei na segunda fileira de bancos próxima a ele, peguei meu indefectível livro e comecei a ler. No entanto, acabei passando quase toda a viagem olhando para o cobrador.


Não sei por que, nem em que momento, mas, ao erguer os olhos, distraidamente, logo me peguei admirando dois detalhes dele: a orelha esquerda, que era a que eu podia observar livremente, estava cheia de argolas no lóbulo inferior, série esta que era encerrada pelo que parecia ser um piercing, e o cabelo curtinho, só não digo cortado à escovinha porque os fios do topo estavam inteiros, e até arrepiados, pintados de amarelo (os fios mais próximos da cabeça e do pescoço eram escuros). Me chamou a atenção o fato de que de repente me dei conta de que, por estes dois detalhes, eu não tinha como saber se quem estava à minha frente era homem ou mulher!


De início, raciocinei que é até engraçado que tudo isso, hoje, possa representar também um homem. Mas, com o tempo, essa impossibilidade de definição começou a me afligir. O perfil, que eu esquadrinhava furiosa mas disfarçadamente em busca de qualquer sinal distintivo mínimo, não dizia nada, e esta era a única parte do cobrador à qual eu tinha acesso! Cada vez mais intrigada, pensei que a única maneira seria conferindo se aquela pessoa tinha seios. Mas levantar assim, do nada, sem a intenção de descer ou ceder o lugar, é muito estranho num ônibus. Sem contar que mesmo isso, hoje, pode não querer dizer muita coisa. Está cada vez mais difícil encontrar sinais para se definir quem é homem e quem é mulher! Cheguei a lembrar de um filósofo muito estudado em Comunicação, Stuart Hall, que, na minha opinião, foi quem melhor escreveu sobre essa perda de referências para se definir de forma segura a identidade de alguém, e, portanto, essa confusão entre referências e identidades num mesmo indivíduo, que às vezes podem ser até antagônicas.


Por exemplo, até mais ou menos a década de 1920, as mulheres tinham que manter os cabelos compridos, no máximo presos em coques e outros penteados. De repente, virou moda cortá-los, ou seja, elas, como os homens, também passaram a usá-los curtos. E ainda houve, ao longo do século passado, as que rasparam a cabeça, corajosamente, pelas mais diversas razões, ou seja, adotaram mais uma prerrogativa masculina. Há, digamos, apenas uma década, piercing era coisa de bandido, ou no mínimo de jovem irresponsável, e brincos - ou argolas na orelha - eram coisas exclusivamente de mulher. Hoje, a maioria dos adolescentes usa piercing, e muitos meninos, e mesmo homens mais maduros, se enfeitam com brincos, sem grandes problemas. Nada contra, acho importante essa modificação de visões, especialmente com relação ao piercing e à tatuagem. Mas não há como negar também que isso complicou a definição das identidades. O que altera a nossa forma de relacionamento com os outros, pois alguém se atreveria a perguntar àquela pessoa que eu estava observando se ela era homem ou mulher?


Minha esperança, então, com relação ao cobrador, foi esperar que ele se virasse na minha direção espontaneamente, mas já não era mais para ver se tinha seios. Examinando um pouco melhor o rosto, comecei a achar-lhe uma delicadeza que provavelmente não encontraria no rosto de um homem. Está bem, mesmo isso hoje pode se alterado, e ainda por cima algumas vezes a natureza pode dar traços mais delicados a um homem e mais viris a uma mulher, mas que diabo, a gente tem que se agarrar a alguma coisa! De repente, as sobrancelhas (ou a sobrancelha, pois continuava só podendo ver bem a esquerda) me chamaram a atenção. De início, me pareceram um pouco grossas, mas estavam feitas, isto é, cada uma era uma linha sem nenhuma ponta espetada. Mas demorei muito para chegar a uma conclusão, confesso. O que me valeu foi que de repente ela virou para uma passageira e falou - a voz era baixa, feminina. Logo depois a passageira ao lado desta, que estava à minha frente, se levantou, e foi então que pude ver o tênis da cobradora: bege claro com desenhos em belos traços grossos pretos representando, pelo que pude perceber, um beija-flor bicando uma flor. (Se bem que, na hora, acabei estabelecendo como única referência realmente segura para se determinar o gênero de alguém, hoje, a presença ou não do pomo-de-adão. Mas isso foi até descobrir que já existe como raspar esse apêndice, e me lembrar de que provavelmente a ingestão de hormônios masculinos pode criá-lo em quem não tem.)


No resto da viagem, a cobradora virou o rosto na minha direção mais umas três ou quatro vezes. Os olhos eram puxados de tal maneira, que pareciam desenhados com delineador, e acho que ela usava batom. A outra orelha não tinha nenhum adorno. Não obstante, havia masculinidade nos cantos da boca derrubados e numa certa frieza contida naqueles olhos azul-escuro. Provavelmente, a tentação de dizer que precisamos mudar nossos conceitos sobre identidades, agora que as referências foram ou estão sendo alteradas, é grande. Até pode ser. Mas tenho que voltar à pergunta que já fiz no texto: se é só perguntando que a gente consegue a resposta mais correta, quem se atreveria a sair perguntando o gênero de quem não conhece?

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Flânerie

Uma das recompensas de sair a caminhar a qualquer momento sem compromisso é poder se sentir dono da cidade onde já nasceu ou mora. Afinal, ser dono de uma propriedade não é poder entrar nela quando quiser, sem ter que pedir permissão para ninguém? Pois a cidade também está aí para isso! Aliás, olhem este belo trecho de Walter Benjamin, que teorizou sobre isso:

"A rua se torna moradia para o flâneur que, entre as fachadas dos prédios, sente-se em casa tanto quanto o burguês entre suas quatro paredes. Para ele, os letreiros esmaltados e brilhantes das firmas são um adorno de parede tão bom ou melhor que a pintura a óleo no salão do burguês; muros são a escrivaninha onde apóia o bloco de apontamentos; bancas de jornais são suas bibliotecas, e os terraços dos cafés, as sacadas de onde, após o trabalho, observa o ambiente". Isto não parece poesia?

Essa flânerie aí, mencionada no título, é o ato de simplesmente caminhar pela cidade, aparentemente sem fazer nada de útil, sem produzir. Mas só aparentemente. Porque quem faz isso, na verdade, é para observar. As pessoas e a arquitetura.

Este termo surgiu na França do século XIX, e serve para designar o ato em si, que envolve o flanar, o passeio, o movimento, e o voyeurismo, ou seja, a observação (o termo voyeurismo é muito mais amplo do que sugere o seu significado mais conhecido). O homem que pratica isso é chamado de flâneur; seu correspondente feminino é a flâneuse.

O flâneur, de acordo com a poesia francesa do século XIX e com o estudo de teóricos como Walter Benjamin, se tornou um personagem freqüente na paisagem urbana dessa época - o mais interessante, aqui, é que uma das razões para isso é que essa atitude era fundamental para quem precisava ou queria se manter informado sobre os acontecimentos do dia, porque muitos desses flâneurs eram escritores e jornalistas. Isto não diz algo, numa época de shoppings centers, entretenimentos virtuais, falta de segurança e de tempo?

É bastante válido fazer esse exercício, principalmente quem quer ser escritor ou jornalista. No entanto, eu mesma demorei anos para descobrir como se faz isso de modo a não parecer uma atividade sem sentido (o que significa que perdia a concentração). Mesmo lendo atualmente livros sobre a flânerie, pois estou pesquisando isso para o meu trabalho de conclusão de curso, é claro que em nenhum deles vai aparecer o "modo de fazer". Descobri por mim mesma que o segredo é se deixar seduzir por qualquer coisa - seja um ambiente, seja uma pessoa - e observar. Observar disfarçadamente, desviando o olhar para que ninguém perceba, mas de modo a anotar todos os detalhes possíveis (mentalmente ou já escrevendo). Anotar é muito importante. Mas a sensação não precisa ser só visual. Ouvir conversas alheias, como se não estivesse presente, também pode ser uma boa fonte de inspiração, ou mesmo de informação.

Meu plano é colecionar cenas e frases. Como sábado passado, quando me pus a observar, no meio da multidão que já cercava o palco para o show-missa em homenagem a Nossa Senhora da Luz, no Largo da Ordem, um homem vestido de azul que andava tropegamente, rindo estranhamente às vezes. Por instinto, pensei que poderia ser alguém com deficiência mental, mas também poderia se tratar apenas de um bêbado - não sei, não me aproximei o bastante para verificar se cheirava a cachaça. Justamente por esses atributos é que ele destoava da multidão, então o acompanhei com o olhar durante um curto tempo, até ele sumir na Galeria Júlio Moreira. Talvez a única coisa mais significativa que ele tenha feito (que me lembre) foi jogar fora um cigarro. Mas me lembro dele até hoje, porque a sua atitude tinha algo de grotesco.

Porém, creio que a minha melhor história de flânerie continua sendo a cena que compartilhei com um amigo, sentados os dois em plena Praça Rui Barbosa: um casal se beijando apaixonadamente no banco em frente ao nosso, por não sei quanto tempo (no mínimo, vários minutos). Era um beijo de tirar o fôlego, e para eles o mundo em volta não existia. O curioso é que, pela saia comprida da menina, suspeitamos que pelo menos ela pudesse ser evangélica. E faltam mais dois elementos para completar este quadro: a pasta do cursinho Dom Bosco, se bem me lembro dela também. E um pacote de presente abandonado no banco, perigando, conforme disse o meu amigo, "passar um molequinho e roubar". Eles pararam num intervalo curto, e voltaram ao beijo. Não lembro se, quando nós dois saímos dali, eles continuavam.

Vale a pena!


Sugestões de livros sobre o assunto:

- As flores do mal, Charles Baudelaire;

- Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo, Walter Benjamin (foi de onde tirei o trecho acima);

- A invenção do cotidiano, Michel de Certeau;

- O cinema e a invenção da vida moderna, Leo Charney e Vanessa R. Schwartz;

- A poética do espaço, Gaston Bachelard (apesar de tratar sobre os mais diversos tipos de "casa" e de "abrigo", vale a pena ser indicado aqui, porque mostra como podemos ser flâneurs também dentro de casa e na natureza - a flânerie surgiu como uma arte essencialmente urbana).

- Dois flâneurs brasileiros: João do Rio e Lima Barreto.


Errata: Na postagem anterior, disse que no atentado de 11 de Setembro, nas Torres Gêmeas, morreram aproximadamente 3 mil pessoas, e mais 184 do Pentágono. 3 mil, ao que parece, foi o saldo total, somando o World Trade Center, o Pentágono (125 mortos, conforme Eugênio Bucci) e o avião que não chegou a atingir a Casa Branca (246 mortos, mesma fonte). Aliás, por que, ao falar nestes atentados, só se menciona as Torres Gêmeas?

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

O substituto da bomba atômica

Ontem vi uns pedaços do Domingo Espetacular, na Record. Confesso que esta crônica está saindo de uma notícia que vi pela metade, mas que me impressionou muito. Ela era a respeito da idéia de dominar o clima de modo a fazer disso uma arma de guerra - e pior: que os Estados Unidos planejam ter essa vantagem em seu exército até 2025.


Conforme disse um cientista consultado pela matéria: qual o interesse em se trabalhar nisso? É incrível como estamos precisando justamente unir todos os povos e pessoas para salvar o mundo, e no entanto ainda surgem idéias destrutivas e, por que não dizer?, suicidas, que a ciência leva adiante, pois lhes dá crédito. Sem contar que já vi este filme antes. Enquanto assistia, outro especialista consultado comparou esta busca de agora com outras que ocorreram anteriormente, em busca do domínio de armas mais poderosas. Lembram da Guerra Fria, em que Estados Unidos e União Soviética disputaram o controle da tecnologia nuclear, ou seja, o segredo da fabricação das bombas atômicas e a legitimação da posse delas? Além do medo velado daqueles anos - os mais velhos devem lembrar, talvez, da célebre história de "apertar um botão vermelho" para que simplesmente o mundo acabasse, porque a expectativa de uma Terceira Guerra Mundial, contando com tais armas, seria essa. E não nos livramos totalmente dessa história hoje, pois há países que fabricam e mantêm essas bombas no seu território, apesar da proibição dos Estados Unidos, sempre eles, que no entanto se reservam o direito de possuir tais armas.


Será que tem como imaginar o que acontecerá se algum humano tiver poder sobre o clima? Só de leve, e mesmo assim já dá para ficar aterrorizado. Segundo outros especialistas consultados na reportagem, seria possível mandar ventos fortes para determinados países (furacões), e até provocar a seca. Certo, talvez desse também para fazer chover em regiões com pouca chuva, mas de nenhuma forma dá para se enganar nesse assunto, ainda mais quando quem está querendo se apossar desse poder é o exército: vai ser usado para a destruição de quem contrariar o país detentor. Não vai ser bom o ser humano ter o domínio do clima, sem contar que, novamente, o homem está brincando de Deus. Mas ninguém hoje leva esse argumento a sério, ou leva?


E outra questão boa de se pensar: supondo que os Estados Unidos realmente consigam esse controle do clima e usem essa arma no "combate ao terror" (leia-se, hoje, muçulmanos) e realmente devastem um país, como, não custa lembrar, fizeram com as cidades de Hiroshima e Nagasaki (bombas atômicas) e com o Vietnã (napalm), será que em seguida vão aceitar que o 11 de setembro perca o posto de "maior ataque terrorista da História" para uma obra deles mesmos? (Já coloquei, em outro momento, que apesar de reconhecer a gravidade deste fato, pois morreram três mil pessoas nos ataques, destas 184 no Pentágono, não considero que este seja o "maior/pior ataque terrorista da História"...)

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Meu hobby

Já deu para perceber que coleciono textos, não? Poemas, letras de música, crônicas, livros de contos (e, ultimamente, contos tirados da Internet também), romances, artigos, reportagens de jornais e revistas e charges (que recorto, xeroco ou, caso mais raro, imprimo). Além da razão óbvia, também é o meu hobby, posso dizer. Capturar textos e organizar as conseqüentes coleções. Ainda posso dizer que é a única coisa que realmente vale a pena roubar, pois posso conservar comigo sem tirar o direito de acesso dos outros, afinal o texto não vai sumir das páginas porque o copiei em um dos meus cadernos.


Confesso que é uma das coisas que está me mantendo ultimamente. Incrível como os atos de capturar e organizar as coleções podem acalmar um indivíduo! Acho que dão até uma sensação de potência, pois é o reino de onde ele é caçador e deus, e sozinho. E quando consegue um item raro que estava procurando há muito tempo, então!? Sente-se realizado. Eu como que volto à infância quando descubro um texto que queria há muito recuperar (por estar, talvez, num dos livros escolares que a minha mãe doou), ou quando descubro finalmente de onde veio aquela frase bonita que há muito me intrigava. No entanto, é claro que às vezes também sou dominada pelo medo de perder toda esta riqueza, seja por incêndio, comida por algum bicho ou por perda pura e simples, como já aconteceu (e estes são os únicos modos de perder uma porção de papéis que me vêm à mente). E também há momentos em que gasto meu tempo imaginando que fim eles levarão quando eu morrer, se vão se dispersar ou se alguma alma caridosa vai manter o conjunto. Se se pensar pela lógica cristã, estou fazendo exatamente o contrário do que prega a religião na qual fui criada, pois estou ajuntando tesouros na terra.


No entanto, é algo que me acalma, como já disse antes. É uma das minhas diversões, porém também é uma necessidade tão básica quanto fazer xixi. Não posso passar muito tempo sem ler literatura - os livros teóricos, por melhores que sejam, como que se embaçam quando sinto essa carência, e eu vou forçando a leitura, o que nem preciso dizer que é um martírio.


Sem contar que tenho um outro segredo: não é raro que comece a ecoar na minha cabeça, insistentemente e por vários dias, sem nenhuma razão, o nome de um autor ou livro. Quando vou ler obedecendo a essa intuição, descubro que estou exatamente no momento de ler aquilo! Ou seja, estou em plenas condições de compreender e tirar proveito do que leio, e já de forma mais rica na primeira leitura, pois não simplesmente leio, mas vivo aquelas palavras com mais intensidade, por algo que já vivi ou pensei antes. Será, então, que não seria mais correto dizer que coleciono leituras, pois aí também posso incluir filmes, quadros e peças de teatro (estes dois, em menor quantidade, por enquanto)?


Agora com licença, que vou copiar um poema de Charles Baudelaire antes de ir para casa.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Como falar de folclore, neste 22 de agosto?

Todos sabemos, por causa da escola, que hoje se comemora o dia do folclore. É uma data internacional, e resolveu-se por ela porque, num dia como hoje, mas em 1846, um arqueólogo inglês chamado William John Thoms publicou um artigo na revista "Athenaeum", em Londres, propondo que as "antiguidades populares" fosse chamada de folk-lore. Quem leu "Histórias de Tia Nastácia", de Monteiro Lobato, deve lembrar que folk significa povo e lore, sabedoria, ciência. Era uma época em que já se discutia bastante sobre a importância de se resgatar as tradições populares. Durante muito tempo na História, e até hoje, muita gente pensa nas pessoas que se criaram no campo como as guardiãs da cultura nacional, em detrimento do povo das cidades, que se estrangeiraram completamente, porque era nas capitais que chegavam as novidades dos outros países e as informações circulavam com maior rapidez. Pelo menos, é o que nos levam a pensar, e não aparece ninguém para discutir conosco esta idéia.


É claro que este é um modo muito simplista de ver esta questão. Por vários motivos, mas vou ficar em um só caminho: costumamos aprender que folclore são, por exemplo, as histórias do Saci, da Iara, do Curupira, no caso do Paraná e de Santa Catarina o Boi-de-Mamão, etc. Sempre as mesmas histórias. De acordo com o também inglês Raymond Williams, teórico da cultura muito estudado também em comunicação social, esta seria a porção arcaica de toda a cultura de um povo, ou seja, existe como objeto de nostalgia ou de estudo. Não se relaciona, pelo menos não diretamente, com a cultura que está em voga atualmente, por exemplo. Simplesmente porque não há como ignorar que o país e o mundo mudaram, se industrializaram, e essas histórias fazem cada vez menos sentido para nós.


No entanto, apesar de estar escrevendo tudo isto, até o meu primeiro ano de faculdade estive envolvida com um grupo de Boi-de-Mamão, o Boi Nitinho ou Boinitinho, que por alguns anos se apresentou em vários pontos de Curitiba, até acabar de uma forma bem estúpida, que contarei em outro momento, oficialmente em 2007 (durou quatro anos). Ainda teve uma sobrevida em outro lugar por mais ou menos um ano e meio, mas já morreu. Os fundadores foram Elói Egídio Pereira e Silvia Gracía Marquez, ele catarinense que praticamente nasceu envolvido com o Boi, ela professora de artes do Centro Juvenil de Artes Plásticas e folclorista. A proposta deles tinha algo de diferente: nós representávamos a história da morte e ressurreição do Boi, mas a qualquer momento podíamos modificá-la. Por exemplo, conversávamos sobre a possibilidade de nem sempre o Boi ser assassinado pelo Vaqueiro para que este pudesse lhe tirar a língua para dar à Mulher grávida e desejosa: ele podia morrer de bala perdida, afogado numa enchente... Uma das histórias que mais ilustram essa abertura foi quando o Elói deu uma oficina para presidiários: eles inventaram que o Boi morreu por falta de liberdade, e a vacina que o ressuscita no final foi por eles chamada de Libertina.


É isto o que estou tentando defender aqui: o culto ao folclore, mas sem enxergá-lo como uma cultura inalterável, que deve permanecer "pura", até porque toda cultura se modifica com o tempo, para continuar acompanhando e fazendo sentido aos que nasceram nela ou a praticam. Aliás, foi o próprio Elói que me ensinou que "folclore", hoje, faz referência a essa parte da cultura que, pela tacanhice de alguns, vive dentro de uma bolha, protegida do próprio povo que a criou. A porção que descende da memória popular mas está por aí sendo reaproveitada conforme as necessidades - o que nós tentamos fazer com o Boi - está sendo chamada de "manifestação popular" (uma pena, porque acho a palavra folclore tão bonita, tão sonora!) No entanto, ao lado disso deveríamos pensar também em tentar resgatar as condições nas quais essas lendas, crenças, costumes, etc. foram sendo criados. Por exemplo, apesar de ter me apresentado com o Boi-de-Mamão por muito tempo, confesso que até hoje estou procurando entender como o Boi pode ter surgido como uma brincadeira de adultos, e não de crianças. É esquisito, não é? Não conseguimos imaginar adultos brincando, a única exceção é com os filhos pequenos. Mas estes criadores e sucessores brincavam, ainda que só depois do expediente. E um detalhe ainda mais curioso: era monopólio dos adultos, as crianças mesmo não podiam brincar de Boi, ou talvez não com os adultos, pelo menos. Por que será? A hipótese que me surgiu agora é que o que hoje conhecemos como Boi-de-Mamão (ou Boi-Bumbá, Bumba-Meu-Boi, etc., em outras partes do Brasil) pode ser o remanescente de alguma antiga festa da Península Ibérica em homenagem aos bois - porque foi uma tradição trazida ao Brasil pelos portugueses. É algo a ser pesquisado, não?


Será que é por toda esta maneira displicente com que tratamos o nosso folclore que quase não se fala nas pessoas como Elói, Silvia e tantos outros, que lutam para preservar as tradições folclóricas (ou manifestações populares)? Para mim, são verdadeiros heróis. Fazem isso sem nem uma ajuda, seja do governo, seja da iniciativa privada. É um trabalho cansativo, no qual constantemente se esbarra na ignorância, na estreiteza de visão e no oportunismo, e que não dá nem dinheiro, nem prestígio. Pelo contrário, quem vive só de folclore pode morrer à míngua completamente desconhecido, como certos artistas populares do Nordeste. Quando o folclore é apresentado aos que não o conhecem em profundidade, não parece que se está falando de algo tão importante como a cultura de um país, mas de uma curiosidade de almanaque, adesiva. Por isso que achamos bonito ou engraçado, até "coisa de caipira", mas que nada tem a ver conosco. Então, qual o sentido de preservar? Urge resgatar a história das tradições populares e dos que tentam preservá-las! Se um povo não se interessa por isso, por que e como devemos cobrar dele depois que vá a museus, teatros, bibliotecas? Ou que se orgulhe do país por fatos importantes e que realmente merecem orgulho? Ele não sabe quem é, nem de onde veio... O meu amigo Elói criticou o Festival de Danças Folclóricas, uma tradição do Teatro Guaíra, quando, no mês de julho, diferentes grupos de folclore étnicos apresentam danças dos povos que representam, e não foi pelo estrangeirismo (já que nunca tem um grupo representando o Brasil): "Eles se apresentam, sempre bonitinhos, e ninguém sabe de onde veio aquela dança, nem quanto o grupo teve que trabalhar para ficar bom". É como se folclore fosse só os resultados que conhecemos hoje, e não todo um processo de criação e evolução, surgido de um modo de vida num dado momento de sua história.


E outro ponto: folclore devia ser ensinado para os grandes também, não só para os pequenos. A preservação também é coisa de gente grande, incluindo governos e patrocinadores privados.


Precisamos copiar dos outros países o orgulho e o respeito com que preservam sua história e suas tradições, não as tradições em si. Ou, melhor ainda: buscar inspiração nesse orgulho e nesse respeito para descobrirmos os motivos para gostarmos de ser brasileiros, apesar de tudo.




***




Dedico esta crônica a todos os que lutam pela preservação do nosso folclore. Meus conhecidos que se enquadram: Elói, Silvia, Margarida (Marg) e todos os que se apresentaram comigo no Boi Nitinho enquanto ele durou (que na época eram crianças).


segunda-feira, 15 de agosto de 2011

A descoberta do mundo

Não consigo me interessar por futebol, e fui contra quando soube que o Brasil sediaria a Copa de 2014, por ser do time daqueles que acham que o Brasil tem outras prioridades para atender antes de se dar ao luxo de torrar bilhões na construção de estádios portentosos e demais gastos que envolvem esse evento.

No entanto, uma única vez uma Copa do Mundo me prestou um serviço importante, ou melhor, a mim e ao meu irmão. O ano era 1998, quando eu tinha 8 anos e ele, 6. Ouvíamos direto anunciar pela televisão os países que iam jogar na Copa, e tanto ouvimos que começamos a ter curiosidade em saber onde ficavam aqueles países. Ao comentar desse interesse com o nosso pai, ele explicou, de forma muito pedagógica: "Vocês sabiam que existe um livro de mapas, chamado atlas, que dá pra gente consultar para saber onde ficam os países?" Desde então, passamos a cobrar dele para que comprasse o tal livro. Ao fim de algum tempo, ele chegou com o atlas debaixo do braço, que temos até hoje, por sinal. Dois dias depois, nos ensinou a localizar qualquer ponto no mapa usando aquelas indicações de letras e números que aparecem em cada página.

A partir daí, o atlas passou a ser mais um dos nossos brinquedos! Ficávamos horas debruçados sobre ele descobrindo o mundo, inventando histórias, etc. Antes de ter o atlas em casa, por exemplo, eu achava que a Holanda (ou "Holândia", como escrevi uma vez quando era criança) ficava onde na verdade está os Estados Unidos, e que a Jamaica era um país da África, não da América Central. Brincamos com o atlas durante tanto tempo, inclusive no jogo de stop, que acabamos decorando naturalmente muitas localizações de países e cidades, e mesmo antes de termos Geografia na escola já adorávamos essa matéria, e nunca tivemos grandes dificuldades nela.

Foi assim que o meu pai nos deu o mundo. Nada mais justo, para homenageá-lo no dia dele, que contar esta bonita história, da qual ele foi um dos protagonistas.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Para Miguel Sanches Neto 2

No dia 31 de janeiro, escrevi aqui uma crônica apressada , manifestando a minha surpresa e descontentamento pelo fato de que Miguel Sanches Neto não mais publicaria crônicas na Gazeta do Povo, ou melhor, só mudaria o gênero de texto a que se dedicaria: as críticas literárias, inclusive tendo uma coluna para elas, como tinha para as crônicas, e que hoje aparece aos domingos.


Hoje vejo que me enganei em quase tudo o que disse naquele momento, pois inclusive coleciono as críticas dele, como antes colecionava as crônicas. Não é que achasse que ele não seria bom crítico, mas sim que ele passaria a escrever, sempre, sobre um mesmo objeto, ou seja, não teria tanta liberdade de forma, e também eu mesma não sabia se leria, pois, em geral, ler crítica bloqueia a minha criatividade - a razão que mais me pesava era essa.


Ainda bem que ele não tem esse efeito em mim, pois Miguel é um crítico positivo, ao contrário da ferocidade que domina esse meio. Desde pequena que leio principalmente a parte cultural da Veja, e logo me habituei a pensar que o objetivo dos críticos é achar defeitos nos produtos culturais que analisam. Mais recentemente, cheguei a escrever que desconfiava que um trabalho, para ser aceito, tinha que ter certos sinais que não sabia quais eram, mas que os críticos seriam os únicos capazes de detectar, e assim só eles teriam o poder quase metafísico de dizer se algo presta ou não, ou seja, se determinado autor/obra merece figurar nos panteões de clássicos obrigatórios e inesquecíveis, ou não, apesar do enorme esforço envolvido na produção. Quem não passasse nesse teste simplesmente fracassou, e não tem nem o direito de saber o por que, não passa de um miserável.


Hoje sei que não é bem assim. Os críticos descrevem os produtos e, segundo um professor meu, servem para desafiar o artista a fazer melhor, a não se satisfazer, o que é essencial para a arte. Eles julgam da forma que julgam dependendo de vários fatores, dos quais quero destacar dois: a teoria cultural a que se filiam e as condições em que realizam o seu trabalho (além de questões psicológicas, amizade, inimizade ou indiferença pelo analisado, etc.). No caso, a maioria dos críticos que parece não fazer outra coisa se não selecionar o que presta e o que não presta da produção atual, de forma a não conspurcar os cânones em que estão Shakespeare, Cervantes, Kafka, Machado de Assis, etc., estes seguem uma escola que quer que a arte continue tendo apenas uma função: conseguir preservar os valores humanos eternos e imutáveis contra a deturpação representada pela cultura de massas, que muitas vezes é sintetizada pelo que está sendo valorizado pelos meios de comunicação. Aliás, tocar incessantemente no rádio ou aparecer várias vezes seguidas na TV só pode mesmo significar que aquela produção cultural não presta. Ou então, estes críticos só enxergam os defeitos de tudo, e ainda, apontando-os de forma irônica, parecem não ter a capacidade de detectar uma única qualidade. O que pessoalmente me incomoda nesta atitude é a acidez - quero ter a sorte de ter críticos que até falem mal do meu trabalho (e não de mim, como fez a Isabela Boscov, na Veja, ao falar sobre o filme "Cilada.com", ao passar muito tempo no texto ironizando o humorista Bruno Mazzeo), mas querendo me ajudar, não me matando de vergonha. Se eu conseguir isso, vou me sentir estimulada a sentar com essa pessoa para juntas acharmos soluções para o que eu tivesse apresentado.


O outro ponto, as condições de trabalho, envolve principalmente a importância que o veículo de comunicação dá à seção de cultura e, por tabela, aos críticos que colaboram nela. Creio que muitos críticos são realmente amargurados, porque, em vez de falar do que gostariam, são obrigados a repercutir, de forma a gerar consumo (e não o debate, que, a princípio, seria o objetivo do trabalho do crítico cultural), produtos que não são mesmo bons, dos quais não gostaram ou de que mal-e-mal fruíram. Nessas condições, o que se faz são resenhas, não críticas.


Esse não parece ser o caso de Miguel. Posso estar errada, mas creio que é ele que escolhe os livros sobre os quais vai escrever, pois seus textos muitas vezes nem têm o gancho jornalístico de, por exemplo, um lançamento, relançamento ou realização de um filme, etc. Muitos, aliás, são completamente desconhecidos do grande público - o trabalho dele é justamente divulgar preciosidades que passam despercebidas, antigas e contemporâneas, à maneira do que faz Mariana Sanches na sua coluna Orelha do Livro, hoje publicada na revista Ler&Cia., mas que já foi programa de rádio. No caso de Miguel, o consumo só aparece no final dos textos, sob a rubrica de "serviço". Simples e elegante. Ele primeiro abre o nosso apetite com o livro e sua própria maneira de falar sobre ele, e depois indica as condições para obtê-lo.


É claro que esse trabalho de divulgação é muito importante. Mas isto, por si só, não resolve nem resolveria o problema da crítica cultural brasileira, que há muito tempo deixou de ser um espaço de debate da produção e consumo de cultura, e que eu apenas tentei esboçar aqui, segundo meus parcos conhecimentos.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

A Amy Winehouse viveu intensamente?

O que me chamou a atenção na cobertura jornalística feita a respeito da morte da Amy Winehouse, e que me irritou profundamente, foi a repetição do desgastado clichê "ela teve uma vida curta e intensa". Creio que deveria ser esclarecido o que se entende por "vida intensa" nesta frase, porque a minha concepção, por exemplo, talvez não seja exatamente a visada neste contexto. O que Amy e outros tantos fizeram foi apressar o fim da própria existência - ou, de acordo com a crença de que a data da morte já foi fixada por Deus muito antes, não se deu uma boa morte. Conseguiu isso através das drogas, tanto lícitas como ilícitas, que debilitaram o organismo dela até aquele último suspiro. Ou seja, em pouco anos deve ter gastado o corpo como se o fizesse há décadas. Visto por este lado, mas somente por este lado, realmente levou uma vida intensa, pois espremeu décadas em poucos anos.


No entanto, as drogas também alienam da realidade, ou seja, a pessoa vive fantasias criadas por um cérebro cada vez mais alucinado. Passa a viver como que dentro de uma bolha. Quando o efeito da droga acaba, a volta para a realidade é dolorosa demais, por isso o dependente químico faz o possível e o impossível para conseguir mais em menos tempo. E essa vida se resume a isso, até a morte ou o tratamento. Se a Amy tentou mesmo se tratar, ela passou por períodos de abstinência - que são exatamente o oposto de "uma vida intensa", são tempos mortos, vazios e extremamente sofridos.


Mas a pior etapa do tratamento nem é essa. É quando a pessoa volta para os ambientes e pessoas que freqüentava antes de entrar na droga, porque vai ter que encontrar maneiras de lidar com os problemas que tinha antes (e/ou os que foram causados pelo vício) sem ceder à (forte) tentação de se drogar. É uma doença, uma condição com a qual a pessoa terá que lutar até o fim da vida, pois recaídas são absolutamente comuns (e não são, como muita gente pensa, problemas de caráter).


Também ninguém sabe ou esclarece como nem por que ela se iniciou no vício, se foi para fugir dos próprios problemas, se foi influenciada por alguém, etc. De qualquer modo, no entanto, suponho que, nos últimos tempos, estivesse gostando cada vez menos da vida. Se isso realmente aconteceu, ela teve a sorte de morrer cedo - não ficou como tantos dependentes químicos que se drogam por décadas, ou seja, enquanto a vida durar. No entanto, jamais saberemos se ela chegaria ao ponto de se recuperar (de novo), e se, desta vez, conseguiria evitar uma recaída.


Por tudo o que foi dito até aqui que eu imagino que "viver intensamente" é gostar da vida, ter disposição para enfrentá-la de cara limpa e com bom humor. Quem consegue isso é que deveria ser reverenciado como sábio, como herói, porque é mais fácil tentar fugir de tudo, e há tantas alternativas para isso! E não importa se a vida se passou sem grandes sobressaltos ou se foi recheada de acontecimentos incríveis. O importante é fazer com que ela valha a pena, e um dos ingredientes para isso é poder vivenciar profundamente cada acontecimento, sem estar anestesiado por algum vício, e sem ter que conviver com a eterna incerteza de conseguir ser forte para evitar uma recaída.


A letra abaixo, clássica, diz muito sobre a vida, e como ela pode ser intensa:




O QUE É O QUE É


(Gonzaguinha)


Eu fico com a pureza das respostas das crianças:


É a vida! É bonita e é bonita!


Viver e não ter a vergonha de ser feliz


Cantar, cantar e cantar


A beleza de ser um eterno aprendiz


Eu sei


Que a vida devia ser bem melhor e será


Mas isso não impede que eu repita


É bonita, é bonita e é bonita!


E a vida? E a vida o que é, diga lá, meu irmão?


Ela é a batida de um coração?


Ela é uma doce ilusão?


Mas e a vida? Ela é maravilha ou é sofrimento?


Ela é alegria ou lamento?


O que é? Como é, meu irmão?


Há quem fale que a vida da gente é um nada no mundo,


É uma gota, é um tempo


Que nem dá um segundo,


Há quem fale que é um divino mistério profundo,


É o sopro do criador numa atitude repleta de amor.


Você diz que é luta e prazer,


Ela diz que melhor é morrer,


Pois amada não é, e o verbo é sofrer.


Eu só sei que confio na moça


E na moça ponho a força da fé,


Somos nós que fazemos a vida


Como der, ou puder, ou quiser,


Sempre desejada, por mais que esteja errada,


Ninguém quer a morte, só saúde e sorte,


E a pergunta roda, e a cabeça agita.


Fico com a pureza das respostas das crianças:


É a vida! É bonita e é bonita!


É a vida! É bonita e é bonita! (grifos meus)




Como se vê, é sempre perigoso repetir uma frase feita sem primeiro procurar questionar o que ela significa. A mídia deveria refletir que usar este adjetivo glamouroso, "intensa", pode ser um fator a mais para incentivar o estilo de vida que Amy Winehouse levava. Mesmo que não seja essa a intenção de ninguém.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Buscando textos

Não é verdade que se acha "tudo" na Internet, como muitos gostam de apregoar por aí. Nunca se disse que numa única biblioteca estaria acumulado todo o conhecimento produzido pela humanidade, então por que com a rede seria diferente? (Bom, tudo bem, dizem que o criador da teoria geocêntrica, o grego Ptolomeu, escreveu um livro contendo todo o conhecimento de Astronomia da época, tendo acesso a nada menos que a Biblioteca de Alexandria... Mas ele viveu, se não me engano, antes de Cristo. Ou, se foi depois, foi no primeiro século d.C.)


A impressão que eu tenho é que na Internet a gente precisa saber um "Abre-te, sésamo" para cada coisa que for procurar, do contrário aparece tudo menos o que se quer. É claro que é mais fácil quando o artigo tem um nome mais específico. Por exemplo, um dia destes indiquei para um amigo ler o conto "Mágoa que rala", texto pouco conhecido do Lima Barreto, que até agora nunca vi em outra antologia que não a organizada pela Lília Moritz Schwarcz - se bem que, para o livro dela, "Contos completos de Lima Barreto", o nome antologia não é verdadeiro, porque ela incluiu manuscritos do autor até então só encontráveis na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Esse meu amigo quis procurar na Internet, eu duvidei que ele fosse achar, mas foi só ele digitar o nome que apareceu! Como eu disse, é porque o texto tem um nome incomum. Está certo, isto é discurso de mau perdedor, devo muito à Internet. Encontrei muitas outras crônicas digitando o nome do autor, ou título e autor. Ou navegando pelo site da Gazeta do Povo, dentro das edições anteriores - calcular a data de semana em semana, viajando-se principalmente para trás, me faz pensar que estou andando por um labirinto. O mal é que o número de viagens é limitado - agora está em 2005. Ou seja, de volta aos jornais de papel da Biblioteca Pública, se é que eles permitem essa promiscuidade.


No entanto, tenho os meus dramas e as minhas broncas. Desde o ano passado busco informações sobre o autor polaco-brasileiro L. Romanowski, autor do maravilhoso romance "Ciúme da Morte", mas nunca encontrei mais que o nome dele em artigos sobre a imigração polonesa no Paraná. O máximo a que cheguei foi achar o nome dele numa lista da Academia Paranaense de Autores. Não me conformo, porque esse livro, de que até existem quantidades razoáveis na Biblioteca Pública, pelo menos nos exemplares que vi (edições da década de 40 e uma da década de 70) não tem um mínimo de informações sobre Romanowski, e eu gostaria de saber se ele teve pelo menos alguma relação com a loucura, um dos temas do seu livro. Alguém aí sabe algo dele?


Também não acho, nem por decreto, duas crônicas não muito conhecidas, uma do Rubem Braga e outra do Luís Fernando Veríssimo. Para início de conversa, a fama e quantidade de textos destes dois inviabiliza muitas palavras de busca, pois geralmente vêm crônicas deles sobre o assunto de que me lembro e que escrevo no Google (algumas vezes são até palavras-chave dentro do texto), mas não vem "a" crônica. Por azar, não sei o nome de nenhuma delas, e nem alguma frase que possa colocar para localizar. A do Rubem Braga eu li um trecho, que caiu num exercício do cursinho. Só sei que está no livro "O homem rouco", no qual vou procurá-la agora. Esta apresentava uma comparação que o autor fazia entre a vida e uma melodia, que tem gente que vai atrapalhando a execução, poluindo de coisas ou tornando cada vez mais vazia. A do Veríssimo era um recorte de jornal que não sei como desapareceu. Só sei que falava sobre os poderes da infância que vamos perdendo com o tempo, como subir em árvores, acertar mais bolinhas de gude, mirar o xixi mais longe, etc.


Alguém por acaso sabe, pelas parcas descrições aqui fornecidas, onde estas crônicas se esconderam? Quando as descobrir, prometo que as publico aqui neste blog.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Caminhando ao Sol

Sexta-feira fiz uma coisa que não fazia há muito tempo: caminhei ao Sol. E sábado fui ler um livro na área comum do meu prédio, um espaço cheio de verde, na frente do parquinho, campinho de futebol e da academia ao ar livre. O Sol e um ventinho que batia estavam bem convidativos.
Há quanto tempo que não me permitia esses presentes! Em parte, por uma rotina agitada, mas também porque o tempo não ajuda. Estamos (ou estávamos, pois ontem já começou a chover e hoje já está mais frio e nublado) atravessando um veranico, que são os dias de calor no inverno. É gostoso um Sol suave, talvez mais próximo do tempo ameno e constante que imagino ser o eterno clima do lendário Jardim do Éden. No verão, infelizmente, o Sol está cada vez mais ardido. Com certeza que não sentiria o calor no meu rosto como uma carícia num Sol tão forte. Outra coisa de que gosto quando brilha o Sol é de observar, da minha janela, uma copa de árvore bem frondosa e verde-escura que fica na frente do meu apartamento sendo iluminada por ele: não sei por que, me lembra um dourado-prateado usado por Klimt, talvez o meu pintor favorito, no quadro "As três idades da mulher". Uma cor empregada justamente para fazer as areias que caem de uma ampulheta invisível, dos lados das três mulheres representadas.
No meu caso, enquanto estou passando por problemas (entenda-se pressões da faculdade), ajo comigo como se não tivesse direito a descanso ou benevolência, a me tratar bem, e o Sol destes dias me lembrou de que tenho esse direito, sim. E o melhor ainda é que algumas coisas podemos nos proporcionar de graça. Em outras palavras, ao me permitir pensar no Sol desta maneira, estou me lembrando de que ele existe e fazendo outros usos dele, além dos involuntários designados em Biologia.


É nessas horas que fico pensando em por que não se pode mais levar uma vida simples e descompromissada, apenas curtindo o Sol, como parece fazer o Caetano Veloso na letra da música "Alegria, alegria", reproduzida abaixo. Quando me permito sair ao Sol, acabo tendo essas idéias, de uma forma ou de outra malucas, mas necessárias para equilibrar a cabeça. Acho que isso é fazer um uso poético do Sol, é dar importância a ele de outras maneiras, o que também pode ser um exercício interessante para quem sente a mente vazia. É como dar um outro nome para uma coisa que já existe. E também descubro outras facetas de mim mesma, ou seja, de outra forma também me dou um outro nome, ao menos pelo tempo em que dura toda essa sensação.


Alerta: o Sol mencionado tantas vezes nesta canção não se refere sempre, necessariamente, ao astro-rei, mas a um jornal com este nome que existia aqui no Brasil na década de 60, uma espécie de ancestral do Pasquim:

Alegria, Alegria (Caetano Veloso)
Caminhando contra o vento
Sem lenço e sem documento
No sol de quase dezembro
Eu vou...

O sol se reparte em crimes
Espaçonaves, guerrilhas
Em cardinales bonitas
Eu vou...

Em caras de presidentes
Em grandes beijos de amor
Em dentes, pernas, bandeiras
Bomba e Brigitte Bardot...

O sol nas bancas de revista
Me enche de alegria e preguiça
Quem lê tanta notícia
Eu vou...

Por entre fotos e nomes
Os olhos cheios de cores
O peito cheio de amores vãos
Eu vou
Por que não, por que não...

Ela pensa em casamento
E eu nunca mais fui à escola
Sem lenço e sem documento,
Eu vou...

Eu tomo uma coca-cola
Ela pensa em casamento
E uma canção me consola
Eu vou...

Por entre fotos e nomes
Sem livros e sem fuzil
Sem fome, sem telefone
No coração do Brasil...

Ela nem sabe até pensei
Em cantar na televisão
O sol é tão bonito
Eu vou...

Sem lenço, sem documento
Nada no bolso ou nas mãos
Eu quero seguir vivendo, amor
Eu vou...

Por que não, por que não...
Por que não, por que não...
Por que não, por que não...
Por que não, por que não...

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Bom mocismo?

Estes tempos, estava lendo uma revista cujo nome não vou dizer aqui. Só digo que terminei de lê-la sentindo extrema angústia e desgosto, algo que a jornalista Monica Waldwogel definiu muito bem numa entrevista, inclusive para esta mesma revista, há alguns meses: "Quando eu termino de ler uma dessas revistas, fico angustiada. A quantidade de coisas que elas aconselham a fazer, a comprar, a aprender é uma enormidade". Ela estava se referindo especificamente às revistas femininas, mas isso acontece com os mais variados tipos de revista, hoje. Cada vez mais se entulha o mercado de dicas sobre isso e sobre aquilo, inclusive de combate ao stress, mesmo que ele seja em grande parte alimentado justamente pelo excesso de informações. A sensação é que agora qualquer um tem tudo o que precisa para ser feliz - se alguém continua tendo problemas e aflições, a culpa é dessa pessoa pela teimosia (ou impossibilidade) de aderir às soluções certas e rápidas.
Sem contar que estamos cada vez mais cercados de bons sentimentos - pobres dos produtos culturais, um dos maiores prejudicados por esse aspecto. Agora cada livro, filme ou peça de teatro, principalmente os dirigidos às crianças, têm que ter uma lição de moral no bojo, evidenciada nas simpáticas sinopses emitidas pelos meios de comunicação. Têm que ser funcionais, têm que ter alguma utilidade direta na vida do público visado - e, no caso das crianças, têm que ensinar boas maneiras de uma maneira lúdica, sendo muitas vezes reduzidos a isso. O mais incrível é que, muitas vezes, um texto lindo sobre a aceitação das diferenças, uma dessas sinopses, pode estar ao lado de um anúncio de produto para emagrecer, ou para ter os cabelos brilhantes! Qual a lógica?
Mas por que estou reclamando dos meios de comunicação? Eles refletem - claro que não de maneira exata e imparcial - o mundo em que vivemos, e muitas vezes têm que se submeter para se manter. Embora fosse muito bom que esses meios pudessem ser financiados de outras maneiras.
Mudando de assunto, porém, o que estão querendo esconder com tanta mensagem positiva, a todo momento? A complexidade da vida. Freqüentemente temos que enfrentá-la mesmo estando completamente despreparados, ela pode não fazer o menor sentido, pode mudar com uma velocidade incrível, nem sempre valoriza méritos e a única certeza que temos a respeito dela é que um dia vamos morrer. A maior parte das pessoas simplesmente não consegue viver com tudo isso na cabeça, então precisa de algum anestésico - mensagens edificantes, consumismo, álcool, drogas, fanatismo religioso... Algo que deixe o mundo mais simples, dê sempre a certeza do que fazer, em qualquer situação, e relaxe. Mas o principal problema de hoje é que, por trás desses anestésicos, há algumas megacorporações lucrando exponencialmente. Parece teoria conspiratória? Infelizmente, não é.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

De uma declaração...

Esta semana que passou foi agitada: morte e não-morte de Amin Khader, morte de verdade de Itamar Franco, decisão da maioria dos médicos em não atender mais por planos de saúde... Quanto a isto, só tenho uma observação a fazer: com a falta de médicos, daqui a pouco poderemos ver nas clínicas particulares as mesmas cenas degradantes que já vemos nos hospitais públicos, de filas intermináveis e pacientes sub-atendidos. Seria bom, portanto, que a questão do pagamento dos médicos se resolvesse de uma vez por todas, para que realmente não haja prejuízo para os clientes, como se alardeia tanto por aí que não haverá.


Mas quero abordar um outro assunto, polêmico também, mas que provavelmente foi esmagado por essa avalanche de acontecimentos: a declaração da deputada Myrian Rios, no início da semana passada, reivindicando o direito dela, como mãe, de despedir empregados que sejam homossexuais por não querer que os filhos sejam molestados sexualmente ou influenciados a gostar de pessoas do mesmo sexo. O que me choca nessa fala é o antigo preconceito de que gays, todos, são necessariamente pervertidos sexualmente, portanto seria comum, e até lógico, que eles também fossem pedófilos e desregrados a ponto de influenciar negativamente outros. Claro, todos sabemos que da homossexualidade à pedofilia é um passo, não é?


Queria saber por que essa desconfiança acirrada contra os gays, que inclusive é um dos argumentos de quem se opõe à adoção por essa fatia da população. Creio que não há razão para não serem vistos como vemos os héteros, e entre os héteros sabemos haver os pedófilos, os abusados, os doentes por sexo, mas também os que se guardam para um relacionamento sério, que só querem achar alguém legal e ser felizes com essa pessoa, os que não ficam se acariciando em público ou na frente das crianças, os que sabem se controlar mesmo estando atraídos por determinada pessoa, etc. Entre os homossexuais também é assim. (Aliás, por que não nos importamos com o fato de um homem hétero ser galinha, portanto podendo ser extremamente desrespeitoso com uma mulher bonita, justificando isso até com a idéia de que os homens não conseguem viver sem sexo? Não é muita hipocrisia?) Já conheci alguns gays, todos extremamente respeitosos, e todos de uma forma ou de outra também envolvidos com crianças. Se o preconceito fosse verdadeiro, pelo menos duas dessas pessoas que conheço não poderiam estar numa sala de aula como professores, mesmo sendo excelentes profissionais. O segredo dessas pessoas é lidar com sua sexualidade de uma maneira muito segura - não escondem que são gays, afinal isso faz parte do que eles são, mas também não se reduzem somente a esta característica, jogando-a na cara dos outros a todo momento. Não têm necessidade disso. Mas quem quiser manter qualquer relacionamento com eles terá que aceitar a homossexualidade deles também, e isto está fora de discussão, o que fica claro com as atitudes que adotam.


É claro que é importante prestar atenção em quem se contrata e durante o tempo de serviço, pois o pedófilo ou tarado não vem marcado na testa. Mas não é a orientação sexual que vai determinar se alguém é isso ou não. É o nível de sanidade mental, em alguns, e o caráter, em outros. A orientação sexual deveria significar apenas por qual tipo de pessoa alguém se sente atraído, nada mais do que isso.