segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Androginia

Ao pegar um ônibus, a princípio nem olhei para a cara do cobrador. Apenas passei, sentei na segunda fileira de bancos próxima a ele, peguei meu indefectível livro e comecei a ler. No entanto, acabei passando quase toda a viagem olhando para o cobrador.


Não sei por que, nem em que momento, mas, ao erguer os olhos, distraidamente, logo me peguei admirando dois detalhes dele: a orelha esquerda, que era a que eu podia observar livremente, estava cheia de argolas no lóbulo inferior, série esta que era encerrada pelo que parecia ser um piercing, e o cabelo curtinho, só não digo cortado à escovinha porque os fios do topo estavam inteiros, e até arrepiados, pintados de amarelo (os fios mais próximos da cabeça e do pescoço eram escuros). Me chamou a atenção o fato de que de repente me dei conta de que, por estes dois detalhes, eu não tinha como saber se quem estava à minha frente era homem ou mulher!


De início, raciocinei que é até engraçado que tudo isso, hoje, possa representar também um homem. Mas, com o tempo, essa impossibilidade de definição começou a me afligir. O perfil, que eu esquadrinhava furiosa mas disfarçadamente em busca de qualquer sinal distintivo mínimo, não dizia nada, e esta era a única parte do cobrador à qual eu tinha acesso! Cada vez mais intrigada, pensei que a única maneira seria conferindo se aquela pessoa tinha seios. Mas levantar assim, do nada, sem a intenção de descer ou ceder o lugar, é muito estranho num ônibus. Sem contar que mesmo isso, hoje, pode não querer dizer muita coisa. Está cada vez mais difícil encontrar sinais para se definir quem é homem e quem é mulher! Cheguei a lembrar de um filósofo muito estudado em Comunicação, Stuart Hall, que, na minha opinião, foi quem melhor escreveu sobre essa perda de referências para se definir de forma segura a identidade de alguém, e, portanto, essa confusão entre referências e identidades num mesmo indivíduo, que às vezes podem ser até antagônicas.


Por exemplo, até mais ou menos a década de 1920, as mulheres tinham que manter os cabelos compridos, no máximo presos em coques e outros penteados. De repente, virou moda cortá-los, ou seja, elas, como os homens, também passaram a usá-los curtos. E ainda houve, ao longo do século passado, as que rasparam a cabeça, corajosamente, pelas mais diversas razões, ou seja, adotaram mais uma prerrogativa masculina. Há, digamos, apenas uma década, piercing era coisa de bandido, ou no mínimo de jovem irresponsável, e brincos - ou argolas na orelha - eram coisas exclusivamente de mulher. Hoje, a maioria dos adolescentes usa piercing, e muitos meninos, e mesmo homens mais maduros, se enfeitam com brincos, sem grandes problemas. Nada contra, acho importante essa modificação de visões, especialmente com relação ao piercing e à tatuagem. Mas não há como negar também que isso complicou a definição das identidades. O que altera a nossa forma de relacionamento com os outros, pois alguém se atreveria a perguntar àquela pessoa que eu estava observando se ela era homem ou mulher?


Minha esperança, então, com relação ao cobrador, foi esperar que ele se virasse na minha direção espontaneamente, mas já não era mais para ver se tinha seios. Examinando um pouco melhor o rosto, comecei a achar-lhe uma delicadeza que provavelmente não encontraria no rosto de um homem. Está bem, mesmo isso hoje pode se alterado, e ainda por cima algumas vezes a natureza pode dar traços mais delicados a um homem e mais viris a uma mulher, mas que diabo, a gente tem que se agarrar a alguma coisa! De repente, as sobrancelhas (ou a sobrancelha, pois continuava só podendo ver bem a esquerda) me chamaram a atenção. De início, me pareceram um pouco grossas, mas estavam feitas, isto é, cada uma era uma linha sem nenhuma ponta espetada. Mas demorei muito para chegar a uma conclusão, confesso. O que me valeu foi que de repente ela virou para uma passageira e falou - a voz era baixa, feminina. Logo depois a passageira ao lado desta, que estava à minha frente, se levantou, e foi então que pude ver o tênis da cobradora: bege claro com desenhos em belos traços grossos pretos representando, pelo que pude perceber, um beija-flor bicando uma flor. (Se bem que, na hora, acabei estabelecendo como única referência realmente segura para se determinar o gênero de alguém, hoje, a presença ou não do pomo-de-adão. Mas isso foi até descobrir que já existe como raspar esse apêndice, e me lembrar de que provavelmente a ingestão de hormônios masculinos pode criá-lo em quem não tem.)


No resto da viagem, a cobradora virou o rosto na minha direção mais umas três ou quatro vezes. Os olhos eram puxados de tal maneira, que pareciam desenhados com delineador, e acho que ela usava batom. A outra orelha não tinha nenhum adorno. Não obstante, havia masculinidade nos cantos da boca derrubados e numa certa frieza contida naqueles olhos azul-escuro. Provavelmente, a tentação de dizer que precisamos mudar nossos conceitos sobre identidades, agora que as referências foram ou estão sendo alteradas, é grande. Até pode ser. Mas tenho que voltar à pergunta que já fiz no texto: se é só perguntando que a gente consegue a resposta mais correta, quem se atreveria a sair perguntando o gênero de quem não conhece?

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