segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Flânerie

Uma das recompensas de sair a caminhar a qualquer momento sem compromisso é poder se sentir dono da cidade onde já nasceu ou mora. Afinal, ser dono de uma propriedade não é poder entrar nela quando quiser, sem ter que pedir permissão para ninguém? Pois a cidade também está aí para isso! Aliás, olhem este belo trecho de Walter Benjamin, que teorizou sobre isso:

"A rua se torna moradia para o flâneur que, entre as fachadas dos prédios, sente-se em casa tanto quanto o burguês entre suas quatro paredes. Para ele, os letreiros esmaltados e brilhantes das firmas são um adorno de parede tão bom ou melhor que a pintura a óleo no salão do burguês; muros são a escrivaninha onde apóia o bloco de apontamentos; bancas de jornais são suas bibliotecas, e os terraços dos cafés, as sacadas de onde, após o trabalho, observa o ambiente". Isto não parece poesia?

Essa flânerie aí, mencionada no título, é o ato de simplesmente caminhar pela cidade, aparentemente sem fazer nada de útil, sem produzir. Mas só aparentemente. Porque quem faz isso, na verdade, é para observar. As pessoas e a arquitetura.

Este termo surgiu na França do século XIX, e serve para designar o ato em si, que envolve o flanar, o passeio, o movimento, e o voyeurismo, ou seja, a observação (o termo voyeurismo é muito mais amplo do que sugere o seu significado mais conhecido). O homem que pratica isso é chamado de flâneur; seu correspondente feminino é a flâneuse.

O flâneur, de acordo com a poesia francesa do século XIX e com o estudo de teóricos como Walter Benjamin, se tornou um personagem freqüente na paisagem urbana dessa época - o mais interessante, aqui, é que uma das razões para isso é que essa atitude era fundamental para quem precisava ou queria se manter informado sobre os acontecimentos do dia, porque muitos desses flâneurs eram escritores e jornalistas. Isto não diz algo, numa época de shoppings centers, entretenimentos virtuais, falta de segurança e de tempo?

É bastante válido fazer esse exercício, principalmente quem quer ser escritor ou jornalista. No entanto, eu mesma demorei anos para descobrir como se faz isso de modo a não parecer uma atividade sem sentido (o que significa que perdia a concentração). Mesmo lendo atualmente livros sobre a flânerie, pois estou pesquisando isso para o meu trabalho de conclusão de curso, é claro que em nenhum deles vai aparecer o "modo de fazer". Descobri por mim mesma que o segredo é se deixar seduzir por qualquer coisa - seja um ambiente, seja uma pessoa - e observar. Observar disfarçadamente, desviando o olhar para que ninguém perceba, mas de modo a anotar todos os detalhes possíveis (mentalmente ou já escrevendo). Anotar é muito importante. Mas a sensação não precisa ser só visual. Ouvir conversas alheias, como se não estivesse presente, também pode ser uma boa fonte de inspiração, ou mesmo de informação.

Meu plano é colecionar cenas e frases. Como sábado passado, quando me pus a observar, no meio da multidão que já cercava o palco para o show-missa em homenagem a Nossa Senhora da Luz, no Largo da Ordem, um homem vestido de azul que andava tropegamente, rindo estranhamente às vezes. Por instinto, pensei que poderia ser alguém com deficiência mental, mas também poderia se tratar apenas de um bêbado - não sei, não me aproximei o bastante para verificar se cheirava a cachaça. Justamente por esses atributos é que ele destoava da multidão, então o acompanhei com o olhar durante um curto tempo, até ele sumir na Galeria Júlio Moreira. Talvez a única coisa mais significativa que ele tenha feito (que me lembre) foi jogar fora um cigarro. Mas me lembro dele até hoje, porque a sua atitude tinha algo de grotesco.

Porém, creio que a minha melhor história de flânerie continua sendo a cena que compartilhei com um amigo, sentados os dois em plena Praça Rui Barbosa: um casal se beijando apaixonadamente no banco em frente ao nosso, por não sei quanto tempo (no mínimo, vários minutos). Era um beijo de tirar o fôlego, e para eles o mundo em volta não existia. O curioso é que, pela saia comprida da menina, suspeitamos que pelo menos ela pudesse ser evangélica. E faltam mais dois elementos para completar este quadro: a pasta do cursinho Dom Bosco, se bem me lembro dela também. E um pacote de presente abandonado no banco, perigando, conforme disse o meu amigo, "passar um molequinho e roubar". Eles pararam num intervalo curto, e voltaram ao beijo. Não lembro se, quando nós dois saímos dali, eles continuavam.

Vale a pena!


Sugestões de livros sobre o assunto:

- As flores do mal, Charles Baudelaire;

- Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo, Walter Benjamin (foi de onde tirei o trecho acima);

- A invenção do cotidiano, Michel de Certeau;

- O cinema e a invenção da vida moderna, Leo Charney e Vanessa R. Schwartz;

- A poética do espaço, Gaston Bachelard (apesar de tratar sobre os mais diversos tipos de "casa" e de "abrigo", vale a pena ser indicado aqui, porque mostra como podemos ser flâneurs também dentro de casa e na natureza - a flânerie surgiu como uma arte essencialmente urbana).

- Dois flâneurs brasileiros: João do Rio e Lima Barreto.


Errata: Na postagem anterior, disse que no atentado de 11 de Setembro, nas Torres Gêmeas, morreram aproximadamente 3 mil pessoas, e mais 184 do Pentágono. 3 mil, ao que parece, foi o saldo total, somando o World Trade Center, o Pentágono (125 mortos, conforme Eugênio Bucci) e o avião que não chegou a atingir a Casa Branca (246 mortos, mesma fonte). Aliás, por que, ao falar nestes atentados, só se menciona as Torres Gêmeas?

2 comentários:

  1. olá ana lúcia,
    gostei muito do seu texto e partilho do prazer de flanar por aí...
    aliás, encontrei seu texto por estar pesquisando bastante este assunto, pois meu tcc também será sobre isso...
    você por acaso é de curitiba?

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  2. Sim, Camila, sou de Curitiba. Que legal você ter gostado.

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