segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Cruz e Sousa e o Dia da Consciência Negra

Apesar de ainda ter poucos Dias da Consciência Negra no currículo (e de eles só terem se intensificado de uns anos para cá), já tenho o meu Dia da Consciência Negra inesquecível. Foi o do ano passado, que teve de especial o fato de eu ter podido ver, na Cultura, o filme "Cruz e Sousa - O poeta do Desterro", do curitibano Sylvio Back, que rapidamente se converteu, para mim, num dos meus filmes brasileiros favoritos.

É um filme que dá à palavra a mesma importância que dá à imagem. O que é, ou deveria ser, até óbvio, em se tratando de um filme sobre um poeta. Mas que poeta! Cruz e Sousa foi um simbolista, ou seja, sugeria mais do que realmente dizia - dele já falou um professor meu, uma vez: "Se você puser numa feira uma barraca de obras simbolistas e outra com outros tipos de obras, a barraca dos simbolistas quase não vai ter fregueses. Mas os poucos fregueses vão pegar os livros e não vão soltar mais". Foi o meu caso, tanto que Cruz e Sousa se converteu no meu poeta brasileiro predileto. Conheci-o durante as aulas de literatura do Ensino Médio, e comecei a lê-lo por curiosidade. Mesmo não entendendo muita coisa nas primeiras leituras, algo nele me agarrou para sempre.

Se extrair imagens filmáveis das palavras de qualquer grande escritor é uma tarefa complicadíssima, fazer isso com Cruz e Sousa é mais difícil ainda. Mas Sylvio Back consegue. Começa que só utiliza no filme palavras escritas por Cruz e Sousa, em poemas e cartas. Para fazer os diálogos, coloca os amigos do poeta lendo essas palavras. Além de usar monólogos interiores, imagens como metáforas, também estiliza cuidadosamente as imagens que acompanham as palavras que vão sendo ditas - um dos melhores exemplos é o da musa ruiva que declama com o poeta numa cena. O fundamental dessa estética é mostrar o mundo como Cruz e Sousa o via, afinal ele passou a vida procurando e descrevendo a beleza nas coisas mais insignificantes, ou pelo menos de fontes não tão óbvias, percepção esta fruto de uma visão mais sofisticada da realidade. Aí está como inteligência e vontade de realizar podem operar milagres, como traduzir palavras de um grande poeta em imagens na tela do cinema! Produtores historicamente com mais recursos para filmar não foram capazes de ousar desta forma, se atendo sempre à velha história clichê de a inspiração do poeta voltar por meio de uma paixão repentina deste. Saí deste filme leve, com vontade de ter feito parte do mundo de Cruz e Sousa, e orgulhosa porque tudo ali era brasileiro!

Mas é claro que o filme não poderia se furtar a mostrar também os problemas que ele enfrentou, devido à inveja, incompreensão e ao preconceito, pois, para quem não sabe, ele era negro. Perdeu um cargo de juiz em Santa Catarina, apesar de ter mostrado aptidão, por causa da cor. Morreu pobre e obscuro porque, não sendo reconhecido como escritor, não conseguiu entrar para a ABL (o próprio mulato Machado de Assis recusou o nome dele), e não pôde ganhar dinheiro com a literatura. Se não fossem os fiéis amigos reclamar o corpo dele para enterrá-lo condignamente, poderia ter sido enterrado como indigente. Mas, como não poderia deixar de ser, veio num vagão de trem de segunda classe, usado para transportar gado.

Na própria poesia dele, como na literatura de alguns intelectuais negros e mulatos da época, vê-se a divisão entre a frustração de não ter nascido branco e o orgulho raivoso de ser negro e poder lutar para vencer a estupidez da discriminação. Do primeiro segmento, é significativa a cena em que se repete várias vezes a frase: "Como ser artista com esta cor!". Do segundo, reproduzo o poema "Escravocratas", agressivo e irônico:


Escravocratas!

Oh! trânsfugas do bem que sob o manto régio
Manhosos, agachados - bem como um crocodilo,
Viveis sensualmente à "luz" dum privilégio
Na "pose" bestial dum cágado tranqüilo.
Escravocratas!
Eu rio-me de vós e cravo-vos as setas
Ardentes do olhar – formando uma vergasta
Dos raios mil do sol, das iras dos poetas,
E vibro-vos à espinha – enquanto o grande basta
O basta gigantesco, imenso, extraordinário –
Da branca consciência – o rútilo sacrário
No tímpano do ouvido – audaz me não soar.
Escravocratas!
Eu quero em rude verso altivo adamastórico,
Vermelho, colossal, d’estrépito, gongórico,
Castrar-vos como um touro – ouvindo-vos urrar!
Castrar-vos como um touro – ouvindo-vos urrar!
Castrar-vos como um touro – ouvindo-vos urrar!

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