segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Dona Amélia

"É curioso que haja tanto respeito pelos mortos e tão pouco pelos vivos. (...) Claro! É fácil ser justo e compreensivo para com os que morrem. Basta enterrá-los... e eles nos deixam em paz. Agora, é difícil compreender e ajudar os vivos vinte e quatro horas por dia, todos os dias do ano, ano após ano..." (Érico Veríssimo)

Ao contrário do que pode parecer, esta não é uma simples epígrafe. É um trecho do livro que D. Amélia está lendo agora, "Incidente em Antares", que está adorando, por sinal. Quem indicou e emprestou foi a melhor amiga, D. Terezinha, para superar a perda recente do filho, rapaz de 24 anos, morto em um assalto, por ter reagido. O mais triste é que o assaltante era um menino da vizinhança, uns 10 anos mais novo, conhecido e sabidamente viciado em drogas.

D. Amélia Maria Cardoso é uma senhora de 63 anos, espécie de D. Benta na aparência e no jeito tímido, que mora na ocupação Professora Izabel Prima de Oliveira, localizada no bairro do Ganchinho, em Curitiba. Mora lá desde 1992, ano da ocupação. Na época, tudo o que tinha era os dois filhos mais velhos pequenos. Saiu do Xaxim para fugir do aluguel abusivo - a situação era tal que ou pagava aluguel ou comprava comida. Pouco antes tinha se separado do marido, alcoólatra.

Vida difícil. Moraram os três numa barraca durante 18 dias, até ela, com a ajuda de amigos, conseguir erguer uma casinha de madeira, que foi ajeitando aos poucos. Algum tempo depois, conforme combinado antes das 120 famílias se transferirem do Xaxim para o Ganchinho, houve um sorteio, e D. Amélia e os filhos foram realocados para uma casa melhor. Pouco depois, conheceu um homem, seu Miguel, seu segundo marido e pai dos dois filhos mais novos, que já morreu. Quando a Cohab começou a regularizar a situação entre os ocupantes e os donos das terras ocupadas, ela e todos os outros passaram a pagar aluguel até conseguirem adquirir os imóveis nos quais já estavam morando. Com os preços um pouco mais praticáveis, passaram anos pagando, porém quase todos já conseguiram. Alguns terminaram o pagamento e venderam a casa, mas, segundo D. Amélia, a maioria continua lá. Por tudo isso, ela se diz agradecida a Deus e a Nossa Senhora dos Imigrantes, a padroeira da bela igreja do local e de todos os ocupantes daqueles bairros - Ganchinho, Sítio Cercado e Bairro Novo, porque todas essas pessoas, pelo menos as adultas, vieram de outros lugares que não Curitiba. São todos "imigrantes" (ou "migrantes", de acordo com a definição da Geografia).

D. Amélia diz que "só por Deus" conseguiu agüentar todas estas provações, mas não acredita em vida após a morte, mesmo sendo católica por convicção. O inferno é aqui mesmo, e a morte é o fim de tudo. Não existe céu nem purgatório. O filho, portanto, já parou de sofrer. Apesar disto, ela me lê três frases que copiou do livro de Érico Veríssimo: "Às vezes neste mundo é preciso mais coragem para continuar vivendo do que para morrer. (...) Não percas a fé no futuro. Quem foi que escreveu que o pior pecado é o pecado contra a esperança?" O romance é sobre sete mortos que se levantam dos túmulos para esperar um enterro digno, no meio de uma greve dos coveiros da cidade de Antares. Estas frases fazem parte do trecho em que um desses mortos vai visitar a esposa grávida, um dos favoritos de D. Amélia. Ela dá uma risadinha e sussurra: "Meu filho podia fazer isso comigo, não?" Mas o pensamento travesso só dura um momento, de repente ela está de volta à sua expressão serena com picos de alegria modesta, característica de pessoas que passaram pelos mesmos problemas que ela.

Mas há as alegrias também, claro. A filha mais velha trabalha num comércio local, e vai casar em dezembro, "com um rapaz bom e trabalhador". Os dois mais novos, gêmeos, estão fazendo o Ensino Médio, na mesma sala. São um menino e uma menina. Logo que acabarem a escola vão arrumar um emprego, até estão ansiosos para isso, querem ajudar a mãe. Todos os filhos são muito ajuizados, muito bonzinhos. D. Amélia se aposentou como servente de um banco faz alguns anos, e recebe o Bolsa-Família para complementar a renda, além de uma parte do salário da filha que trabalha (e também recebia do filho que morreu).

Quando ela morrer, sabe que só deixará para os filhos a casa que já é deles e o estudo. Enfim, como se conforma D. Amélia, na vida tem coisas ruins, mas também tem muita coisa boa. A melhor são os filhos que Deus lhe deu: Pedro, 24; Raquel, 22; Graciosa e Henrique, 16.

Nota: As pessoas citadas não existem. Esta crônica foi feita misturando-se fatos reais com imaginação pura da autora. É verdade que os bairros Ganchinho, Sítio Cercado e Bairro Novo foram formados por ocupações, e que uma destas saiu do Xaxim, e que os ocupantes tiveram que pagar aluguel aos donos da terra, por intermédio da COHAB. E em algumas ocupações houve sorteio para realocar as pessoas. Existe a Igreja de Nossa Senhora dos Imigrantes, pelo motivo já apontado, mas a "ocupação Professora Izabel Prima de Oliveira" não existe, este é apenas o nome de uma rua do bairro Ganchinho. Esta crônica é uma brincadeira, um treinamento para o trabalho de conclusão de curso da autora.

Nenhum comentário:

Postar um comentário