segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Como falar de folclore, neste 22 de agosto?

Todos sabemos, por causa da escola, que hoje se comemora o dia do folclore. É uma data internacional, e resolveu-se por ela porque, num dia como hoje, mas em 1846, um arqueólogo inglês chamado William John Thoms publicou um artigo na revista "Athenaeum", em Londres, propondo que as "antiguidades populares" fosse chamada de folk-lore. Quem leu "Histórias de Tia Nastácia", de Monteiro Lobato, deve lembrar que folk significa povo e lore, sabedoria, ciência. Era uma época em que já se discutia bastante sobre a importância de se resgatar as tradições populares. Durante muito tempo na História, e até hoje, muita gente pensa nas pessoas que se criaram no campo como as guardiãs da cultura nacional, em detrimento do povo das cidades, que se estrangeiraram completamente, porque era nas capitais que chegavam as novidades dos outros países e as informações circulavam com maior rapidez. Pelo menos, é o que nos levam a pensar, e não aparece ninguém para discutir conosco esta idéia.


É claro que este é um modo muito simplista de ver esta questão. Por vários motivos, mas vou ficar em um só caminho: costumamos aprender que folclore são, por exemplo, as histórias do Saci, da Iara, do Curupira, no caso do Paraná e de Santa Catarina o Boi-de-Mamão, etc. Sempre as mesmas histórias. De acordo com o também inglês Raymond Williams, teórico da cultura muito estudado também em comunicação social, esta seria a porção arcaica de toda a cultura de um povo, ou seja, existe como objeto de nostalgia ou de estudo. Não se relaciona, pelo menos não diretamente, com a cultura que está em voga atualmente, por exemplo. Simplesmente porque não há como ignorar que o país e o mundo mudaram, se industrializaram, e essas histórias fazem cada vez menos sentido para nós.


No entanto, apesar de estar escrevendo tudo isto, até o meu primeiro ano de faculdade estive envolvida com um grupo de Boi-de-Mamão, o Boi Nitinho ou Boinitinho, que por alguns anos se apresentou em vários pontos de Curitiba, até acabar de uma forma bem estúpida, que contarei em outro momento, oficialmente em 2007 (durou quatro anos). Ainda teve uma sobrevida em outro lugar por mais ou menos um ano e meio, mas já morreu. Os fundadores foram Elói Egídio Pereira e Silvia Gracía Marquez, ele catarinense que praticamente nasceu envolvido com o Boi, ela professora de artes do Centro Juvenil de Artes Plásticas e folclorista. A proposta deles tinha algo de diferente: nós representávamos a história da morte e ressurreição do Boi, mas a qualquer momento podíamos modificá-la. Por exemplo, conversávamos sobre a possibilidade de nem sempre o Boi ser assassinado pelo Vaqueiro para que este pudesse lhe tirar a língua para dar à Mulher grávida e desejosa: ele podia morrer de bala perdida, afogado numa enchente... Uma das histórias que mais ilustram essa abertura foi quando o Elói deu uma oficina para presidiários: eles inventaram que o Boi morreu por falta de liberdade, e a vacina que o ressuscita no final foi por eles chamada de Libertina.


É isto o que estou tentando defender aqui: o culto ao folclore, mas sem enxergá-lo como uma cultura inalterável, que deve permanecer "pura", até porque toda cultura se modifica com o tempo, para continuar acompanhando e fazendo sentido aos que nasceram nela ou a praticam. Aliás, foi o próprio Elói que me ensinou que "folclore", hoje, faz referência a essa parte da cultura que, pela tacanhice de alguns, vive dentro de uma bolha, protegida do próprio povo que a criou. A porção que descende da memória popular mas está por aí sendo reaproveitada conforme as necessidades - o que nós tentamos fazer com o Boi - está sendo chamada de "manifestação popular" (uma pena, porque acho a palavra folclore tão bonita, tão sonora!) No entanto, ao lado disso deveríamos pensar também em tentar resgatar as condições nas quais essas lendas, crenças, costumes, etc. foram sendo criados. Por exemplo, apesar de ter me apresentado com o Boi-de-Mamão por muito tempo, confesso que até hoje estou procurando entender como o Boi pode ter surgido como uma brincadeira de adultos, e não de crianças. É esquisito, não é? Não conseguimos imaginar adultos brincando, a única exceção é com os filhos pequenos. Mas estes criadores e sucessores brincavam, ainda que só depois do expediente. E um detalhe ainda mais curioso: era monopólio dos adultos, as crianças mesmo não podiam brincar de Boi, ou talvez não com os adultos, pelo menos. Por que será? A hipótese que me surgiu agora é que o que hoje conhecemos como Boi-de-Mamão (ou Boi-Bumbá, Bumba-Meu-Boi, etc., em outras partes do Brasil) pode ser o remanescente de alguma antiga festa da Península Ibérica em homenagem aos bois - porque foi uma tradição trazida ao Brasil pelos portugueses. É algo a ser pesquisado, não?


Será que é por toda esta maneira displicente com que tratamos o nosso folclore que quase não se fala nas pessoas como Elói, Silvia e tantos outros, que lutam para preservar as tradições folclóricas (ou manifestações populares)? Para mim, são verdadeiros heróis. Fazem isso sem nem uma ajuda, seja do governo, seja da iniciativa privada. É um trabalho cansativo, no qual constantemente se esbarra na ignorância, na estreiteza de visão e no oportunismo, e que não dá nem dinheiro, nem prestígio. Pelo contrário, quem vive só de folclore pode morrer à míngua completamente desconhecido, como certos artistas populares do Nordeste. Quando o folclore é apresentado aos que não o conhecem em profundidade, não parece que se está falando de algo tão importante como a cultura de um país, mas de uma curiosidade de almanaque, adesiva. Por isso que achamos bonito ou engraçado, até "coisa de caipira", mas que nada tem a ver conosco. Então, qual o sentido de preservar? Urge resgatar a história das tradições populares e dos que tentam preservá-las! Se um povo não se interessa por isso, por que e como devemos cobrar dele depois que vá a museus, teatros, bibliotecas? Ou que se orgulhe do país por fatos importantes e que realmente merecem orgulho? Ele não sabe quem é, nem de onde veio... O meu amigo Elói criticou o Festival de Danças Folclóricas, uma tradição do Teatro Guaíra, quando, no mês de julho, diferentes grupos de folclore étnicos apresentam danças dos povos que representam, e não foi pelo estrangeirismo (já que nunca tem um grupo representando o Brasil): "Eles se apresentam, sempre bonitinhos, e ninguém sabe de onde veio aquela dança, nem quanto o grupo teve que trabalhar para ficar bom". É como se folclore fosse só os resultados que conhecemos hoje, e não todo um processo de criação e evolução, surgido de um modo de vida num dado momento de sua história.


E outro ponto: folclore devia ser ensinado para os grandes também, não só para os pequenos. A preservação também é coisa de gente grande, incluindo governos e patrocinadores privados.


Precisamos copiar dos outros países o orgulho e o respeito com que preservam sua história e suas tradições, não as tradições em si. Ou, melhor ainda: buscar inspiração nesse orgulho e nesse respeito para descobrirmos os motivos para gostarmos de ser brasileiros, apesar de tudo.




***




Dedico esta crônica a todos os que lutam pela preservação do nosso folclore. Meus conhecidos que se enquadram: Elói, Silvia, Margarida (Marg) e todos os que se apresentaram comigo no Boi Nitinho enquanto ele durou (que na época eram crianças).


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