domingo, 24 de maio de 2009

Animais dos Espelhos

Em um dos volumes das Cartas Edificantes e Curiosas que aparecem em Paris durante a primeira metade do século XVIII, o padre Zallinger, da Companhia de Jesus, planejou um estudo das ilusões e erros do povo de Cantão; em um censo preliminar anotou que o peixe era um ser fugitivo e resplandecente que ninguém havia tocado, mas que muitos alegavam ter visto no fundo dos espelhos. O padre Zallinger morreu em 1736 e o trabalho iniciado por sua pena ficou inacabado; cento e cinqüenta anos depois, Herbert Allen Giles assumiu a tarefa interrompida.

Segundo Giles, a crença no peixe é parte de um mito mais amplo, que se refere à época legendária do Imperador Amarelo.

Naquele tempo, o mundo dos espelhos e o mundo dos homens não estavam, como agora, incomunicáveis. Eram, além disso, muito diferentes; não coincidiam nem os seres nem as cores nem as formas. Ambos os reinos, o especular e o humano, viviam em paz; entrava-se e saía-se pelos espelhos. Uma noite, a gente do espelho invadiu a terra. Sua força era grande, porém, ao fim de sangrentas batalhas, as artes mágicas do Imperador Amarelo prevaleceram. Este rechaçou os invasores, encarcerou-os nos espelhos e lhes impôs a tarefa de repetir, como em uma espécie de sonho, todos os atos dos homens. Privou-os de sua força e de sua figura e reduziu-os a meros reflexos servis. Um dia, entretanto, livrar-se-ão dessa mágica letargia.

O primeiro a despertar será o peixe. No fundo do espelho perceberemos uma linha muito tênue e a cor dessa linha não se parecerá com nenhuma outra. Depois, irão despertando as outras formas. Aos poucos diferirão de nós, aos poucos deixarão de nos imitar. Romperão as barreiras de vidro ou de metal e dessa vez não serão vencidas. Junto às criaturas dos espelhos combaterão as criaturas da água.

No Yunnan não se fala do peixe, e sim do tigre do espelho. Outros acreditam que antes da invasão ouviremos do fundo dos espelhos o rumor das armas.

Referência:
BORGES, Jorge Luis; GUERRERO, Margarita. O livro dos seres imaginários. Tradução de Carmen Vera Cirne Lima. 8 ed. São Paulo: Globo, 2000.

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