quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Vultos em poças
Da chuva caída
Se espelham sombras 
Em pingos d'água
Enamorados abraço
A vida num só passo

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Frases ruins

      Quando estudamos História na escola, aprendemos os fatos fotograficamente, isto é, estratificados no tempo. O problema é que os conceitos que esses fatos encerram também se cristalizam na nossa mente, e assim nos habituamos a pensar em certos conceitos como parte da nossa identidade. Portanto, não pensamos que esses conceitos podem mudar, pela simples razão de que tudo está em constante evolução.
       Ao dizer isso, estou pensando numa idéia específica: a inferioridade do Brasil nas coisas consideradas importantes, como política, economia, educação, costumes e hábitos em geral, produção e valorização artísticas, etc. Me acostumei a ouvir da dependência econômica e cultural do Brasil, por exemplo. No tempo em que aprendia História, o Brasil tinha uma dívida externa enorme e os Estados Unidos e a Europa eram os todo-poderosos. Hoje, o Brasil está crescendo economicamente, enquanto os EUA e a Europa passam por uma crise. O que acho mais curioso é que faz pouco tempo que comecei a ouvir falar que os EUA também têm problemas, como a dívida externa, os rombos na previdência, gastos exorbitantes e inadequados, corrupção política. Até então, do jeito como os adultos me pintavam o mundo, o Brasil tinha todos os problemas do mundo, enquanto que os EUA eram o paraíso na Terra, exceto pela comida e pelo patriotismo cego. E hoje isso ruiu. O Brasil é a terra do futuro para os haitianos. Mais estrangeiros estão fazendo intercâmbio por aqui. Ouve-se o tempo todo que o Brasil tem cada vez mais importância econômica e política no mundo. 
         Com relação à cultura, pelas aulas de literatura estou acostumada a ouvir que os poucos jovens abastados que iam estudar na Europa importavam as tendências literárias do momento, que procuravam abrasileirar. Desta perspectiva, o Brasil nunca inventou nada, artisticamente falando. Apenas teríamos começado a crescer com o Modernismo. Apesar disso, nunca levamos um Nobel. Nem um Oscar (acabamos de perder mais um, inclusive). Mas pouco se comenta que a bossa nova influenciou e influencia músicos e cantores do mundo todo, incluindo o jazz que é produzido hoje (sendo que na sua origem a bossa nova foi fortemente influenciada pelo jazz). Que Glauber Rocha é venerado na França. Que vários dos nossos filmes mais recentes foram premiados em festivais europeus, e que, por falar nisso, a qualidade técnica dos nossos filmes está melhorando. Que muitos dos nossos autores mais importantes já foram traduzidos em várias línguas, e estudados por críticos e estudiosos de outros países. Que Ana Maria Machado e Lygia Bojunga Nunes foram algumas das nossas autoras mais premiadas no exterior, tendo inclusive recebido o Prêmio Hans Christian Andersen, considerado o Nobel da literatura infantil. Que alguns pontos altos da nossa literatura são as crônicas, a literatura infanto-juvenil e as canções populares. Que Tom Jobim recentemente foi premiado pelo conjunto da sua obra nos Estados Unidos. Ou seja, temos grandes momentos, apesar da nossa longa história de dependência cultural. 
           Nos acostumamos ao complexo de vira-lata, e o grave é que ele é reforçado em todos os contextos, mesmo na educação. Tive alguns professores de História e Geografia que davam a entender que o Brasil seria uma droga para todo o sempre, que não teria solução (então, para que estávamos estudando, para que trabalharíamos, pagaríamos impostos, votaríamos e educaríamos filhos no Brasil?). Suspeito que uma das razões para isso era a reação contrária à época da ditadura, em que todos eram obrigados a louvar em excesso as qualidades do Brasil e esquecer completamente os defeitos. Criticar o tempo todo significa ter visão, espírito crítico - mas também pode ser péssimo, na medida em que nos equiparamos a outros povos e criticamos mesmo os avanços e as coisas bonitas. É até um crime esquecer certos problemas, como a miséria, a violência e a corrupção generalizadas, a ignorância que mantém certos hábitos e idéias que deveríamos sepultar, a não-valorização da cultura, entre outros. Mas por que não discutir com os alunos formas de resolvê-los, em vez de lhes tirar a esperança num futuro melhor? 
           Mesmo nas situações mais cotidianas a gente acaba flagrando essa idéia feita, em frases como "Esse é o Brasil", "O Brasil é assim mesmo", "O povo é muito ignorante", e expressões como "povinho", "zé-povinho", etc. Refletem um triste conformismo. Por isso que eu me tornei inimiga destas frases.                 

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Saudades da Whitney

         Agora que a Whitney morreu, percebo como ela fez parte da minha infância - por influência dos meus pais, a escutávamos direto aqui em casa. Aliás, eles mesmos começaram tendo por um dos temas do namoro a lindíssima Didn't we almost have it all, que, depois da clássica I will always love you, tema do filme "O guarda-costas", é a minha favorita. Logo que saiu esse filme, no começo dos anos 90, eles compraram o disco com a trilha sonora, que temos até hoje, e dá-lhe escutar. Houve uma época na minha infância que escutei demais esse LP, apesar de até hoje não saber cantar nenhuma das músicas. Nunca fiz questão de aprender, para mim já era suficiente escutar aquela voz divina, sonhar com ela, me fazer viajar naquelas músicas. Portanto, apesar dos vários discos e CDs que ela lançou, o meu conhecimento dela se limita mais a essa trilha sonora, apesar de a minha mãe ter também o LP lançado em 1987 e também o CD lançado em 2007, com os maiores sucessos da carreira dela. 
          Não obstante, acho que a Whitney foi a primeira pessoa famosa cuja morte realmente lamentei. Acho que foi a primeira diva que eu vi morrer - ela era, e continua sendo para mim, a perfeita definição da musa, linda daquele jeito e com aquela voz perfeita. E, além disso, sentia como se ela fosse íntima aqui de casa  - quando tocava uma música no rádio, logo me alegrava: "É a Whitney!", como se ela estivesse nos fazendo uma visita depois de muito tempo, e pelo menos eu paro o que estou fazendo para escutá-la. Aqui em casa nós a chamamos de Whitney o tempo todo.
           Devo reconhecer que é estranho esse sentimento em mim, porque não costumo ser dada a paixões arrebatadas por ídolos famosos. Não teria pique, por exemplo, para ir ao enterro dela, supondo que pudesse. Talvez apenas fizesse questão de visitar o túmulo dela quando fosse a Nova York, não sei. Nunca fui a um show na minha vida, nunca fiz questão de ir, e nem sei se algum dia vou - pode ser até que não tenha paciência para curtir um evento destes, porque não a criei quando fui criança e quando fui adolescente, mesmo adorando o artista. Mas, se estivesse, provavelmente não vaiaria a Whitney quando descobrisse que a voz dela já não era mais a mesma, transtornada pelos anos de bebidas e drogas. Mas que ficaria decepcionada, ah, sim, ficaria. Talvez tenha sido até melhor não ter descoberto isso ao vivo, para não destruir a imagem que conservo dela até hoje. (O meu único momento realmente egoísta com relação à Whitney foi pensar, quando descobri isso, que a voz dela era um patrimônio da humanidade, e, como tal, merecia ter sido melhor cuidada.) 
           E, por fim, o meu próprio jeito de curtir música é diferente. Costumo me agarrar a uma ou a um punhado de músicas do artista, demorando muito para ir descobrindo as outras que ele gravou. E também demoro muito para decorar as letras para conseguir cantar, que é uma das minhas frustrações. Principalmente pela primeira razão é que normalmente não me sinto segura em me afirmar fã de determinado cantor - parece-me, na maioria das vezes, que soa mais verdadeiro me afirmar fã das músicas, não tanto do artista (o que deve ter me resguardado um pouco das loucas paixões pela pessoa, e até eliminado a necessidade dos shows para mim). Da Whitney, por exemplo, além das citadas, gosto realmente das seguintes: One moment in time, Exhale (Shoop Shoop), I have nothingI´m every woman, ou seja, exata meia dúzia. Mas isso não me impede de colocá-la no meu panteão, ao lado de Chico Buarque, Raul Seixas, Rita Lee e Dionne Warwick (sim, a prima da Whitney) - pode ser, inclusive, que eu tenha outros ídolos para completar esta lista, dos quais não estou me lembrando agora, todos nas mesmas condições de apenas algumas músicas conhecidas e apreciadas, por maior que seja o repertório. Refletindo sobre isso, descobri que não é necessário tentar saber todas as músicas para ser um super fã de alguém, o importante é a empatia que as músicas, as letras, o jeito de cantar e o que mais for provoca em você enquanto ouvinte. Então, posso afirmar, sem medo de errar: sou muito fã da Whitney!
            Descanse em paz, Whitney.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Diferentes modos de fama

Estou de volta, depois de dois meses de ausência. Devo dizer que tive férias muito agradáveis, embaladas por uma paixão de infância: a mitologia e dramaturgia gregas.

Esta paixão começou com a leitura do livro "O Minotauro", do Monteiro Lobato (dos livros infantis dele, este é o meu favorito, o que mais falou comigo), no qual ele leva o pessoal do Sítio para a Grécia Antiga, a fim de resgatar a Tia Nastácia, que tinha sido seqüestrada pelo Minotauro, o monstro do labirinto do Rei Minos que Teseu matou. E o autor não perde a oportunidade de contemplar duas épocas da Grécia de antes de Cristo: a mitológica, antes mesmo do acontecimento da Guerra de Tróia, que é para a qual vão Pedrinho, Emília e o Visconde de Sabugosa, e onde está a Tia Nastácia (segundo o livro, século XV a.C.), e a do tempo em que Péricles a governava (século IV a. C.). Nessa é que ficam Dona Benta, Narizinho e até o Marquês de Rabicó. E creio, inclusive, que esse livro acaba dando uma dimensão até mais profunda a essa sensação de poder se relacionar com vultos históricos de outros tempos do que o filme "Meia-noite em Paris", que também vi nestas férias, porque ao contrários do protagonista do filme de Woody Allen, os personagens de Monteiro Lobato não conseguem parecer que são da época na qual eles vieram parar, porque a distância temporal é muito maior (o ano deles é 1939 d.C., ou seja, são, respectivamente, 35 e 24 séculos de separação!). Óbvio que tudo, as roupas, as comidas, os menores utensílios cotidianos, quase tudo que falam é motivo de incompreensão para os gregos. E o melhor é que os "picapauzinhos" tentam explicar as coisas modernas, seja para se divertir com o espanto dos gregos, seja para tentar se fazer compreender minimamente, seja para saciar a curiosidade deles. O que dá um charme todo especial ao livro, principalmente à sua linguagem, mas também às situações que acabam aparecendo - por exemplo, os gregos chegam a experimentar pipoca e batata frita, comidas que não existiam entre eles porque eles não conheciam o milho nem a batata, plantas originárias da América. Até hoje às vezes me perco em devaneios em que viajo para outras épocas, encontro meus ídolos (o próprio Monteiro Lobato, Lima Barreto, Cruz e Sousa...) e não posso escapar de ficar dando esse tipo de explicações.

Isso foi uma das coisas que mais me chamou a atenção em "O Minotauro". Mas o livro acaba também sendo uma declaração de amor à cultura grega antiga, na qual às vezes até respinga o desprezo do próprio Lobato pelos modernistas. Mas o importante é que me fez ter vontade de conhecer melhor a mitologia grega, da qual, não sei quando, passei às peças de teatro - cheguei a ler "Édipo Rei", de Sófocles na escola, mas demorou muito para que eu pudesse ler uma peça grega e compreendê-la (na verdade, compreender qualquer peça que lesse, porque, como elas não narram, ou narram muito pouco a história, é mais difícil de formar a história na cabeça. Ainda mais se é escrita em versos, como é o caso das gregas e das shakesperianas!). Com relação à mitologia, já cheguei a pesquisar e a ler muito sobre as várias histórias - a Guerra de Tróia, os Argonautas, os doze trabalhos de Hércules, as aventuras de Teseu, Perseu e diversos outros heróis gregos, o panteão, etc. - inclusive num outro livro de Lobato, "Os doze trabalhos de Hércules" (até hoje só li o que vai do primeiro ao sexto, nunca cheguei a ler o que diz "de 7 a 12"), e a fazer anotações e cruzar dados, como uma pesquisadora. Só por hobby. É algo incrivelmente estimulante, pelo menos para mim, porque vou descobrindo muita beleza e me surpreendendo sempre.

Por que estou contando tudo isso? Porque, ao olhar para a cultura grega, que admiro, uma coisa me chama a atenção: os heróis eram homens considerados extraordinários, pois tinham realizado grandes feitos, e por conta deles sua fama tinha se espalhado pelo mundo inteiro. O objetivo da vida de todo homem grego deveria ser esse. Como na crença deles não havia vida após a morte - todas as almas iam para o Hades, que era o inferno, e só se lembravam de quem tinham sido se bebessem sangue -, a única maneira de sobreviver era essa, sendo famoso de modo a atravessar gerações e poder servir de exemplos para elas. Hoje, no entanto, só se quer a fama, pouco importando o que fazer para aparecer, mas apenas aparecer. Pode-se dizer que o jogo se inverteu com o passar dos séculos. Os gregos compreendiam que a fama era apenas uma conseqüência de uma vida que não deveria ser esquecida, para poder servir de exemplo - Aristóteles dizia que "a verdadeira grandeza está em merecer honrarias, não em recebê-las". Daí que, hoje, com a comunicação a mil por hora, sejamos bombardeados com nulidades que incompreensivelmente estão na crista da onda, algo que na verdade só me irrita porque eu acabo sabendo mesmo não querendo saber, mesmo fazendo de tudo para não saber (e é uma jornalista que vos diz isso, hein!), e também pelo péssimo exemplo a outras pessoas. Talvez a melhor utilidade para a fama fosse essa que os gregos acabaram legando ao mundo, mas também é demais esperar que um dia voltemos todos a pensar desta forma.

No entanto, quando é que vamos nos mancar?

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Tolerância e enriquecimento cultural

Quando se fala em preservar o planeta, normalmente só se pensa em ecologia, e não também na paz entre os homens. Até parece que a globalização resolveu de vez esse problema, ao fazer as diferentes culturas humanas se comunicarem entre si, por meio da mais moderna rede de comunicação que temos. Mas será mesmo que dá para acreditar que a globalização resolveu o problema da distância entre os mais variados povos do mundo? Para início de conversa, ela inclui mesmo todos os povos nesta comunhão? O objetivo da globalização é econômico, só apoiando a cultura quando esta é rentável. E a paz entre os seres humanos é outra frente pela qual devemos pensar em preservar o planeta, ao procurar criar mais pessoas dispostas a ser tolerantes com diferenças.

Vi este ano dois filmes que mostram que ainda tem muito chão para aprendermos mais esta lição, mas que também mostram caminhos possíveis para ela. Um deles, que mostra um primeiro estágio de se conviver com uma cultura diferente e mergulhar nela, é "Tempos de Paz", de Daniel Filho. O personagem de Dan Stubalch é um polonês que faz questão de aprender a língua portuguesa, e chega a se encantar com a poesia brasileira. Pensa que os brasileiros seriam puros demais para saber o que é o aniquilamento causado pela guerra, a ponto de provavelmente nem ter palavras que abordassem esse assunto, porque a violência não existiria aqui. Ele é obrigado a rever esse conceito quando, ao chegar ao Rio de Janeiro, fugido da Segunda Guerra Mundial, encontra um truculento oficial (Tony Ramos), xará seu, que narra com naturalidade cenas de tortura que infligiu a várias pessoas que de uma forma ou de outra foram tidas como inimigas, e sempre deixando claro que "só cumpria ordens". O próprio polonês tem que vencer a ignorância da autoridade para não ter que voltar para a Polônia arrasada pela guerra, e acaba lançando mão da sua arte para isso, pois ele era ator. Mesmo ignorantão, o Segismundo brasileiro se comove, uma personificação da aceitação que muitos intelectuais europeus, que inclusive aparecem no final, tiveram no nosso país. E essas pessoas acabaram tendo influência sobre a nossa cultura. Lembro de três exemplos: Ziembinski, Paulo Rónai e Otto Maria Carpeaux.

O segundo filme já focaliza o elemento estrangeiro instalado no povo que o acolheu. "Homens e Deuses", do diretor francês Xavier Beauvois, se baseia em fatos reais para contar a história de um grupo de monges franceses na Argélia que morreram na mão de terroristas que, diante do caos político em que estava o país, estavam querendo fazer revolução para tomá-lo. O grande dilema desses monges era, primeiro, aceitar ou não ficar sob a proteção do governo corrupto e, depois, permanecer no país ou voltar para a França. Mas a cena exemplar da tolerância cultural dos religiosos católicos (embora haja outras) é quando os terroristas estão prestes a invadir o mosteiro e o líder dos monges, frei Christian, se propõe a convencê-los a não fazer isso. No diálogo, ao explicar que justamente aquela era a noite de Natal, ele repete algumas vezes, referindo-se a Jesus, "Issä, o Príncipe da Paz", que é como os muçulmanos nomeiam Jesus. Ou seja, teve a sensibilidade de traduzir sua fé para a língua deles, ainda que só visando ao claro objetivo da não-invasão. Quando o líder dos invasores finalmente entende de que data se está falando, ele vira-se para os companheiros e, ao repetir em árabe o que lhe disse o frei, demonstra conhecer a importância do Natal para os seguidores de Cristo. Em sinal de respeito, resolve não invadir o mosteiro, pelo menos não naquela noite, pede desculpas e ainda estende a mão para frei Christian, que a aperta depois de hesitar um pouco.

É sublime o interesse em conhecer a cultura diferente e o respeito a ela, que cada um destes filmes mostra de um jeito. Trata-se de uma grande oportunidade, no mínimo, de enriquecimento pessoal e intelectual, tanto para pessoas como para países. Mas a tolerância também envolve desafios e até sacrifícios. No primeiro caso, o polonês precisou modificar uma idéia linda que tinha sobre o povo que o acolhia, e ainda lutar contra uma hostilidade para poder ficar, hostilidade com a qual ele não contava. Não chega a ser um drama, pela maneira como esse personagem encara e vence essa realidade. Mas creio que a perda dessa inocência, até cômoda em certos casos, de se pensar só bem ou só mal de uma determinada cultura, é um dos motivos que faz muita gente ter medo e fugir do que é diferente.

No segundo, a situação é mais trágica. É lógico que os monges não podem concordar com a forma de lutar do grupo terrorista, que chegou ao ponto de matar pessoas em plena luz do dia, à vista de todos. No entanto, devido a preceitos religiosos, também não podia concordar com a execução do líder dos terroristas e com a profanação do cadáver feita pela multidão indignada. Sem contar que algumas vezes sentiram a rejeição de alguns argelinos, por eles pertencerem ao povo que no passado os colonizou e empobreceu. Esses monges, com a exceção de um, acabaram mortos pelos fanáticos terroristas - mas, antes disso, frei Christian teve a oportunidade de deixar claro que isso vinha de uma parte dos muçulmanos, não da cultura muçulmana em si, na qual todos eles encontravam até muito sentido. Lamentável que deles só restou o exemplo, não é? Talvez se os assassinos tivessem usado da mesma humanidade que as vítimas usaram com eles...

É aquela velha história: não é fácil, mas vale a pena. Prêmio: um mundo sem guerras.


***


Aviso aos meus leitores que vou tirar férias em dezembro e janeiro. Volto na primeira semana de fevereiro. Obrigada a todos que me acompanharam neste ano. Feliz Natal e um próspero Ano Novo!

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

O problema do machismo, de novo

O homem se desenvolveu de diferentes modos no seu espalhamento pelo globo, e mesmo entre povos vizinhos as maneiras de pensar podem ter diferenças muito grandes. Cada sociedade, ao tentar simplesmente sobreviver no ambiente em que se fixou, encontrou problemas, solucionou-os (ou não), passou por uma história com altos e baixos que pode explicar bastante sobre o caráter do seu povo, teve que enfrentar invasores, desenvolveu uma fé ou foi conquistado por uma fé alheia, desenvolveu ou não um sistema de escrita, quis conquistar todos os povos do mundo ou apenas lutou o dia-a-dia para sobreviver, foi criando uma cultura que sobrevive de alguma forma nos seus descendentes atuais e mesmo nos povos invasores ou conquistados (porque a cultura e seus efeitos nunca são neutros, mesmo que essa cultura original tenha sido extinta porque seus praticantes foram todos eliminados fisicamente). E é maravilhoso estudar culturas diferentes e perceber nelas originalidades, coisas que de repente nunca haviam passado pela cabeça. Ou novos modos de dizer a mesma coisa, ou de praticar a mesma coisa.
No entanto, claro, não devemos esquecer que todas as culturas são produtos criados pelo homem. Portanto, nenhuma está livre de cometer erros, e alguns bem trágicos ou pelo menos dramáticos. Hoje estou me referindo a uma notícia da semana passada, em que uma mulher de um país muçulmano foi estuprada, e por isso foi presa – e o pior é que a pena alternativa seria ela casar com o agressor, a quem não aconteceu nada judicialmente.
Esse fato (e esse é um fato que chegou à mídia mundial; portanto, podemos imaginar o tanto de outros iguais ou piores) reflete uma concepção tremendamente errada da mulher, uma concepção que, não faz muito tempo, era oficial no Ocidente também, e hoje sobrevive em homens que batem nas companheiras ou até as matam. O fato de não ter acontecido nada legalmente com o agressor, de ele ter sido declarado inocente, enquanto que a vítima dele foi presa, diz o seguinte: se a mulher é violentada, a culpa é dela, e não do bruto que a violentou. Quem mandou seduzi-lo, ou seja, quem mandou se comportar como uma sem-vergonha na frente dele? Ele é homem, puxa vida (aliás, que desculpa mais esfarrapada, não é não?). Agora, não se queixe. Até porque você estava gostando, se não fez nada na hora para impedir. No fundo, isso aí é o medo que o homem tem da mulher, por saber, intuitivamente muitas vezes, que ela é mais forte do que ele. Em muitas culturas nômades, era a mulher a responsável por carregar as casas do grupo nas costas – motivo: elas eram mais fortes, e o homem precisava ter as mãos livres para proteger o bando. Em outras culturas, tentou-se castrar a sexualidade da mulher, para ela não seduzir o homem (porque mulher é um bicho terrível mesmo) e assim o desviar do bom caminho. E essas providências foram desde cobrir completamente o corpo da mulher, algo que dominou tanto no Ocidente como no Oriente, não instruí-la a respeito de sexo, até cortar-lhe o clitóris, para que ela não sentisse prazer no ato sexual. E foi esta concepção que novamente vigorou quando aquele policial canadense disse para uma estudante da universidade onde ele foi dar uma palestra sobre estupro que ela foi culpada pela violência que sofreu, por “usar roupas de vadia”, o que acabou dando origem à “Marcha das Vadias” em todo o mundo, mais para o começo deste ano.
O grave de tudo isso é que, mesmo após a revolução feminina das décadas passadas (ainda que o feminismo no Ocidente e no Oriente não esteja andando nos mesmos passos, e nem nos mesmos modos), a presença desta concepção vem nos dizer que alguns homens continuam achando que são os únicos donos do planeta, portanto têm direito a tudo, inclusive violentar mulheres pelas quais simplesmente se sintam atraídos, tenham feito elas algo para que isso acontecesse ou não. Ou seja, é melhor a mulher se comportar, ou sofrerá as conseqüências. Esse "se comportar" significa se acomodar às regras que os homens criam para ela, abrindo mão de qualquer identidade própria e única. Assim, ela passa a ser uma coisa que serve apenas para desempenhar as funções que os homens reservam para ela. E mesmo assim a proteção contra a violência não é garantida, porque, ao mesmo tempo em que ela se anula, ele cada vez mais pensa que tem direito a tudo para atender ao menor dos seus caprichos.

E, ao pensar que a vítima é na verdade culpada da violência que sofreu, não se pensa no sofrimento moral dela, que é mais terrível que o sofrimento físico – afinal, as marcas no corpo desaparecem depois de algum tempo. Mas as marcas que ficam na alma vão durar para sempre, ainda que de forma mais discreta se a mulher (ou o homem vítima de estupro) conseguir se tratar nesse sentido. E o estuprador deve ser isolado do mundo, mas também passar pelas mãos de um psicólogo para descobrir por que ele não conseguiu (ou não consegue) se segurar, a fim de que não repita a violência com outras pessoas. Quando é que vamos começar a tratar as pessoas como gente?

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Cruz e Sousa e o Dia da Consciência Negra

Apesar de ainda ter poucos Dias da Consciência Negra no currículo (e de eles só terem se intensificado de uns anos para cá), já tenho o meu Dia da Consciência Negra inesquecível. Foi o do ano passado, que teve de especial o fato de eu ter podido ver, na Cultura, o filme "Cruz e Sousa - O poeta do Desterro", do curitibano Sylvio Back, que rapidamente se converteu, para mim, num dos meus filmes brasileiros favoritos.

É um filme que dá à palavra a mesma importância que dá à imagem. O que é, ou deveria ser, até óbvio, em se tratando de um filme sobre um poeta. Mas que poeta! Cruz e Sousa foi um simbolista, ou seja, sugeria mais do que realmente dizia - dele já falou um professor meu, uma vez: "Se você puser numa feira uma barraca de obras simbolistas e outra com outros tipos de obras, a barraca dos simbolistas quase não vai ter fregueses. Mas os poucos fregueses vão pegar os livros e não vão soltar mais". Foi o meu caso, tanto que Cruz e Sousa se converteu no meu poeta brasileiro predileto. Conheci-o durante as aulas de literatura do Ensino Médio, e comecei a lê-lo por curiosidade. Mesmo não entendendo muita coisa nas primeiras leituras, algo nele me agarrou para sempre.

Se extrair imagens filmáveis das palavras de qualquer grande escritor é uma tarefa complicadíssima, fazer isso com Cruz e Sousa é mais difícil ainda. Mas Sylvio Back consegue. Começa que só utiliza no filme palavras escritas por Cruz e Sousa, em poemas e cartas. Para fazer os diálogos, coloca os amigos do poeta lendo essas palavras. Além de usar monólogos interiores, imagens como metáforas, também estiliza cuidadosamente as imagens que acompanham as palavras que vão sendo ditas - um dos melhores exemplos é o da musa ruiva que declama com o poeta numa cena. O fundamental dessa estética é mostrar o mundo como Cruz e Sousa o via, afinal ele passou a vida procurando e descrevendo a beleza nas coisas mais insignificantes, ou pelo menos de fontes não tão óbvias, percepção esta fruto de uma visão mais sofisticada da realidade. Aí está como inteligência e vontade de realizar podem operar milagres, como traduzir palavras de um grande poeta em imagens na tela do cinema! Produtores historicamente com mais recursos para filmar não foram capazes de ousar desta forma, se atendo sempre à velha história clichê de a inspiração do poeta voltar por meio de uma paixão repentina deste. Saí deste filme leve, com vontade de ter feito parte do mundo de Cruz e Sousa, e orgulhosa porque tudo ali era brasileiro!

Mas é claro que o filme não poderia se furtar a mostrar também os problemas que ele enfrentou, devido à inveja, incompreensão e ao preconceito, pois, para quem não sabe, ele era negro. Perdeu um cargo de juiz em Santa Catarina, apesar de ter mostrado aptidão, por causa da cor. Morreu pobre e obscuro porque, não sendo reconhecido como escritor, não conseguiu entrar para a ABL (o próprio mulato Machado de Assis recusou o nome dele), e não pôde ganhar dinheiro com a literatura. Se não fossem os fiéis amigos reclamar o corpo dele para enterrá-lo condignamente, poderia ter sido enterrado como indigente. Mas, como não poderia deixar de ser, veio num vagão de trem de segunda classe, usado para transportar gado.

Na própria poesia dele, como na literatura de alguns intelectuais negros e mulatos da época, vê-se a divisão entre a frustração de não ter nascido branco e o orgulho raivoso de ser negro e poder lutar para vencer a estupidez da discriminação. Do primeiro segmento, é significativa a cena em que se repete várias vezes a frase: "Como ser artista com esta cor!". Do segundo, reproduzo o poema "Escravocratas", agressivo e irônico:


Escravocratas!

Oh! trânsfugas do bem que sob o manto régio
Manhosos, agachados - bem como um crocodilo,
Viveis sensualmente à "luz" dum privilégio
Na "pose" bestial dum cágado tranqüilo.
Escravocratas!
Eu rio-me de vós e cravo-vos as setas
Ardentes do olhar – formando uma vergasta
Dos raios mil do sol, das iras dos poetas,
E vibro-vos à espinha – enquanto o grande basta
O basta gigantesco, imenso, extraordinário –
Da branca consciência – o rútilo sacrário
No tímpano do ouvido – audaz me não soar.
Escravocratas!
Eu quero em rude verso altivo adamastórico,
Vermelho, colossal, d’estrépito, gongórico,
Castrar-vos como um touro – ouvindo-vos urrar!
Castrar-vos como um touro – ouvindo-vos urrar!
Castrar-vos como um touro – ouvindo-vos urrar!

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Sem inspiração

Carlos Henrique Furtado é um dos meus mestres, para quem envio cartas, e de quem recebo também. Oportunamente, vou dando mais informações sobre ele, ao longo das crônicas. Por enquanto, fiquem com o trecho de uma carta dele, que recebi esta semana e achei interessante:


Estou sem inspiração, mas escrevo por princípio. Penso que todo aquele que se intitula escritor deveria fazer um esforço para escrever um pouco todo dia. Ou, pelo menos, isso vale para mim.


Portanto, aqui estou eu, enfileirando letras, palavras e frases. Ao correr da pena, como diria o José de Alencar (o escritor do século XIX, não o vice-presidente do Lula, que é José Alencar), que para mim é uma das melhores definições de crônica. Mas também sem ter idéia do que vai resultar disto aqui.


A escrita já é, para mim, um vício. Mesmo sem ter nada para escrever, escrevo qualquer coisa, todo dia. Escrevo e guardo, não consigo jogar fora, como fazem outros escritores. Fui me acostumando a escrever todo dia, porque muitas vezes é tentador deixar um pensamento só na cabeça, sem tentar expressá-lo. Ou então, é um pensamento que passa tão rápido, que é até frustrante tentar capturá-lo, afinal a própria natureza dele é ser fugidio, enquanto que a natureza das palavras é fixar algo por muito tempo, se não para sempre. Em outras palavras, às vezes esse antagonismo não funciona bem. No entanto, às vezes também pode se tratar de um pensamento tão bobo, que nem vale a pena guardá-lo num registro, ou pelo menos é assim no momento da passagem dele.


Contudo, este é um dos desafios da literatura, talvez mesmo o mais elementar, embora provavelmente vá acompanhar o escritor ao túmulo (o que acontece, aliás, com todos os desafios da literatura). Lutar contra a preguiça, o comodismo e seja lá o que mais for, para tentar escrever. Se não comportasse este e outros desafios, a literatura não seria mais do que uma prática de e para diletantes. Quem ouve o chamado da literatura e se rende a ela até pode ser um escravo feliz desta senhora, como escreveu Mario Vargas Llosa. Mas o seu penar acontece escondido, somente nos bastidores, e muitas vezes não é visível também por ser apenas mental. Procurar escrever todo dia é o heroísmo de cada dia, embora isso não esteja à disposição da vista do mundo. Foi Charles Baudelaire quem definiu maravilhosamente bem: "Eu ponho-me a treinar (ou lutar, dependendo da tradução) em minha estranha esgrima".


Só esta carta já dá uma crônica, não é verdade? Por isso a publiquei aqui, num dia em que estava sem inspiração.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Criticar os cantores, não os fãs

Vi, semana passada, um texto do Regis Tadeu, comentador de música no site Yahoo!, sobre a suposta separação da dupla Zezé di Camargo e Luciano. Até tenho uns textos dele guardados, embora ache que ele seja por demais pessimista - quando quer ferrar com alguém, ferra mesmo, sem nenhuma piedade, e leva os fãs junto. Foi o caso desse texto sobre a dupla. É habitual que ele invista contra ídolos adolescentes, dando a entender que as meninas fãs deles, se pensassem, não cultuariam aquela pessoa.

Para início de conversa, e pela minha concepção, creio que a maior parte do público de Zezé di Camargo e Luciano já deve ter mais ou menos a idade deles, ou seja, na média dos quarenta e poucos. Por exemplo, quando noticiaram essa separação e perguntaram a opinião dos fãs, na TV quem aparecia era gente dessa faixa etária, se não mais velha. Não consigo enxergar pessoas de 15 anos gostando deles, embora com certeza deva existir uma exceção nesse sentido, sempre existe exceção. Ok. Mas o que realmente me deixou incomodada nesse texto foi a virulência com que atacou os fãs da dupla, simplesmente por serem fãs da dupla, dizendo que eles não têm o hábito de pensar, o que se nota pelos coraçõezinhos que fazem com as mãos nos shows, e que não têm noção de romantismo nem de poesia, a poesia do próprio cancioneiro brasileiro, que realmente é muito rico de bons textos.

Ao contrário do que pode parecer, não sou fã deles, embora tenha gostado do filme e goste de algumas músicas, mais antigas - como "É o amor", que foi a maior vítima de Regis Tadeu nesse artigo. É, aliás, uma das poucas dos dois que acho que tem alguma poesia, e olhe que ando investigando compositores como Chico Buarque, Caetano Veloso, Raul Seixas, entre outros. Acho que o grande problema deles é que eles não cantam, apenas gritam. Até dá para entender que, quando se lançaram na carreira musical, foram sem muito preparo, porque não tinham condições de arcar com isso, mas agora quem disse que não poderiam fazer isso? Na minha opinião, quem é cantor tem que continuamente estar fazendo aula de canto, técnica vocal, essas coisas. Aprender e reaprender a usar o instrumento de trabalho, porque, ironicamente, quem é perito em uma área sabe que deve estar sempre estudando para se aprimorar, porque não sabe, nem nunca vai saber, tudo relacionado àquela área. Se a pessoa não tem essa humildade, ela vai acabar se limitando, e logo vai deixar de ser eficiente naquela atividade. Mesmo que, tendo feito um nome, continue sendo uma referência importante.

Repare que, para criticar a dupla, não precisei insultar também os fãs. Não vejo sentido nisso, porque o gosto por alguma coisa é composto por uma parte objetiva e outra subjetiva. A objetiva, pode-se dizer, é aquela que é medida pelas referências culturais, obtidas através da educação, portanto que são medidas estatisticamente. Por essa via, posso afirmar que muita gente que gosta de Zezé di Camargo e Luciano não tem outras referências de ritmos e cantores, o que na verdade é mais motivo de indignação contra a falta da educação de qualidade para todos do que contra as pessoas que não têm esse tipo de referência. É claro que existem os fãs desmiolados, principalmente entre meninas adolescentes, e esse tipo de pessoa é insuportável, mas não se pode generalizar que todos os fãs de um cantor sejam assim. No entanto, imaginando uma criança que entre na escola agora, e que se Deus quiser vai ter a sorte de pegar aulas de música já regulamentadas (já existe a lei tornando isso obrigatório, mas ainda não se sabe como essas aulas vão funcionar, por isso que elas ainda não entraram em vigor em todo o país), ou seja, que vai ser minimamente educada musicalmente, vai saber que existem outros tipos de música além das que seus pais gostam (que é a primeira referência para a criança) e vai poder escolher o que vai ouvir e saber argumentar por que gosta ou não gosta de algo. Isso é ótimo. No entanto, não necessariamente vai deixar de ouvir Zezé di Camargo e Luciano por causa disso. Eles podem ter sido a trilha sonora da sua infância, e ela pode prosseguir escutando-a, ou não. Mesmo sabendo, e dizendo, que eles não são a melhor referência dentro da música brasileira, ou da música sertaneja. Pode-se culpar alguém por causa dessa subjetividade? Claro que não. O único remédio é, realmente, tapar o ouvido, caso o gosto não seja o mesmo.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

A última crônica, Fernando Sabino

Presente, my dears...
Lembram de uma aula em que a Monica Berger comentou sobre esta crônica do Fernando Sabino? Pois finalmente a encontrei! É linda! Vejam:

A Última Crônica
Fernando Sabino
A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica. Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome. Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho -- um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular. A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim. São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: "parabéns pra você, parabéns pra você..." Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura -- ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido -- vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso. Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso. Texto extraído do livro "A Companheira de Viagem", Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1965, pág. 174.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Ode à solidão

Estes dias vi, pela Internet, a nova propaganda da Revista Superinteressante, revista que me acompanhou, se não na minha infância, pelo menos na minha adolescência, e à qual devo muitíssimo. E a propaganda estava muito bem feita, traduzia bem o espírito da revista, ainda que comece com uma verdade inquietante: todas as regras que você segue hoje vão mudar amanhã. Porque a ciência está sempre se reformulando.



No entanto, há alguns meses tive uma decepção com essa revista, e ela foi reavivada pela propaganda. Não lembro em que mês, a matéria de capa dizia que quanto mais amigos uma pessoa tiver, mais feliz ela será. Claro que fiz questão de ler, e fiquei espantada com o tom infantil da reportagem, que dizia que se você tiver no mínimo quatro amigos você já será beneficiado com essa felicidade, contendo até mesmo um infográfico apresentando uma escala de quantidade e efeitos psicológicos. Até um limite, pois a própria revista reconheceu que existe um número-limite de amigos que uma pessoa pode ter ao longo da vida, mesmo estando conectada em várias redes sociais. Isto foi mencionado na propaganda, durante alguns segundos. E, adivinhe só, quem vive sozinho está condenado à infelicidade, ao alcoolismo, à depressão. Automaticamente. (Verdade seja dita que esta outra parte não estava escrita na revista, nem dita na propaganda, andei vendo em reportagens publicadas em sites como Yahoo! e MSN). Só concordo com o argumento de que ter alguém por perto incentiva a pessoa a cuidar melhor da saúde e da aparência.


A primeira questão de tudo: o que é amizade? Será que alguém sabe responder quando é que uma pessoa passa de simples conhecida a amiga? Pessoalmente, acho que as redes sociais banalizaram a palavra "amigo", porque muitas aceitações que passam a ser conhecidas com esse nome são pessoas que aparecem do nada e pedem para ser adicionadas - algumas vezes são completamente desconhecidas, outras são pessoas com as quais se convive, mas sem muito contato, e que de repente passam a compartilhar fotos e intimidades do "adicionador". Não é estranho? E simplesmente se aceita, porque é fácil, é só apertar um botão. Ou até para contabilizar mais amigos. Fico pensando se amigos são garrafas de felicidade que podemos beber para então ficar felizes.



O que estou tentando dizer aqui é que, por estas vias, se valoriza muito a quantidade de amigos, que é a dimensão que pode ser facilmente exibida a quem quer que seja, inclusive ao próprio ego, e não a qualidade, que é mais difícil de obter e de enxergar. Lembro de um provérbio chinês que diz que, para se ter um amigo, é necessário comer dois sacos de sal, querendo significar que leva muito tempo para fazer de alguém um amigo. O que será que se esconde por trás dessa obsessão pela quantidade, mesmo em detrimento da qualidade?



Suponho que o medo da solidão e, por consqüência, da infelicidade. Como se ter uma multidão ao redor impedisse sempre alguém de se sentir solitário, mesmo em meio a ela, por faltar integração. As relações humanas são muito mais complexas do que estamos acostumados a compreender. Em contrapartida, nem sempre alguém solitário é infeliz. E se foi a pessoa quem escolheu esse tipo de vida? Não consigo imaginar gente como Dalton Trevisan, Jack Nicholson, Selton Mello ou Chico Buarque infelizes, estando livres para fazer o que quiserem e voltar à hora que bem entenderem para casa, só procurando companhia quando necessitam dela. Guy de Maupassant, outro solitário desse naipe e um dos meus contistas favoritos, escreveu muitas histórias cujo protagonista tinha exatamente esse estilo de vida - ainda que acabassem enlouquecendo, porque só tinham compromisso com os próprios prazeres (e isso incluía não fazer nada de útil na vida), creio que o escritor também gostava dessa liberdade, devido ao modo como a descreve. E o detalhe é que Maupassant tinha grandes amigos, a começar por Flaubert, seu mestre, mas também precisava dessa solidão e liberdade, inclusive para trabalhar.




Pode até ser um modo de vida interessante, melhor do que se cercar de gente só para não se sentir só, e mesmo assim se sentir, inclusive suportando uma relação insustentável por causa disso. Talvez seja o melhor modo de vida para estas pessoas mencionadas acima porque é o que melhor se ajusta à personalidade delas. Será que alguém já parou para pensar que existem certos tipos de personalidade que preferem a solidão? Será que isso a ciência explica?


Errata: Na crônica da semana passada, o nome da paróquia localizada no bairro Ganchinho, que realmente existe, é "Nossa Senhora dos Migrantes". Por uma letra...

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Dona Amélia

"É curioso que haja tanto respeito pelos mortos e tão pouco pelos vivos. (...) Claro! É fácil ser justo e compreensivo para com os que morrem. Basta enterrá-los... e eles nos deixam em paz. Agora, é difícil compreender e ajudar os vivos vinte e quatro horas por dia, todos os dias do ano, ano após ano..." (Érico Veríssimo)

Ao contrário do que pode parecer, esta não é uma simples epígrafe. É um trecho do livro que D. Amélia está lendo agora, "Incidente em Antares", que está adorando, por sinal. Quem indicou e emprestou foi a melhor amiga, D. Terezinha, para superar a perda recente do filho, rapaz de 24 anos, morto em um assalto, por ter reagido. O mais triste é que o assaltante era um menino da vizinhança, uns 10 anos mais novo, conhecido e sabidamente viciado em drogas.

D. Amélia Maria Cardoso é uma senhora de 63 anos, espécie de D. Benta na aparência e no jeito tímido, que mora na ocupação Professora Izabel Prima de Oliveira, localizada no bairro do Ganchinho, em Curitiba. Mora lá desde 1992, ano da ocupação. Na época, tudo o que tinha era os dois filhos mais velhos pequenos. Saiu do Xaxim para fugir do aluguel abusivo - a situação era tal que ou pagava aluguel ou comprava comida. Pouco antes tinha se separado do marido, alcoólatra.

Vida difícil. Moraram os três numa barraca durante 18 dias, até ela, com a ajuda de amigos, conseguir erguer uma casinha de madeira, que foi ajeitando aos poucos. Algum tempo depois, conforme combinado antes das 120 famílias se transferirem do Xaxim para o Ganchinho, houve um sorteio, e D. Amélia e os filhos foram realocados para uma casa melhor. Pouco depois, conheceu um homem, seu Miguel, seu segundo marido e pai dos dois filhos mais novos, que já morreu. Quando a Cohab começou a regularizar a situação entre os ocupantes e os donos das terras ocupadas, ela e todos os outros passaram a pagar aluguel até conseguirem adquirir os imóveis nos quais já estavam morando. Com os preços um pouco mais praticáveis, passaram anos pagando, porém quase todos já conseguiram. Alguns terminaram o pagamento e venderam a casa, mas, segundo D. Amélia, a maioria continua lá. Por tudo isso, ela se diz agradecida a Deus e a Nossa Senhora dos Imigrantes, a padroeira da bela igreja do local e de todos os ocupantes daqueles bairros - Ganchinho, Sítio Cercado e Bairro Novo, porque todas essas pessoas, pelo menos as adultas, vieram de outros lugares que não Curitiba. São todos "imigrantes" (ou "migrantes", de acordo com a definição da Geografia).

D. Amélia diz que "só por Deus" conseguiu agüentar todas estas provações, mas não acredita em vida após a morte, mesmo sendo católica por convicção. O inferno é aqui mesmo, e a morte é o fim de tudo. Não existe céu nem purgatório. O filho, portanto, já parou de sofrer. Apesar disto, ela me lê três frases que copiou do livro de Érico Veríssimo: "Às vezes neste mundo é preciso mais coragem para continuar vivendo do que para morrer. (...) Não percas a fé no futuro. Quem foi que escreveu que o pior pecado é o pecado contra a esperança?" O romance é sobre sete mortos que se levantam dos túmulos para esperar um enterro digno, no meio de uma greve dos coveiros da cidade de Antares. Estas frases fazem parte do trecho em que um desses mortos vai visitar a esposa grávida, um dos favoritos de D. Amélia. Ela dá uma risadinha e sussurra: "Meu filho podia fazer isso comigo, não?" Mas o pensamento travesso só dura um momento, de repente ela está de volta à sua expressão serena com picos de alegria modesta, característica de pessoas que passaram pelos mesmos problemas que ela.

Mas há as alegrias também, claro. A filha mais velha trabalha num comércio local, e vai casar em dezembro, "com um rapaz bom e trabalhador". Os dois mais novos, gêmeos, estão fazendo o Ensino Médio, na mesma sala. São um menino e uma menina. Logo que acabarem a escola vão arrumar um emprego, até estão ansiosos para isso, querem ajudar a mãe. Todos os filhos são muito ajuizados, muito bonzinhos. D. Amélia se aposentou como servente de um banco faz alguns anos, e recebe o Bolsa-Família para complementar a renda, além de uma parte do salário da filha que trabalha (e também recebia do filho que morreu).

Quando ela morrer, sabe que só deixará para os filhos a casa que já é deles e o estudo. Enfim, como se conforma D. Amélia, na vida tem coisas ruins, mas também tem muita coisa boa. A melhor são os filhos que Deus lhe deu: Pedro, 24; Raquel, 22; Graciosa e Henrique, 16.

Nota: As pessoas citadas não existem. Esta crônica foi feita misturando-se fatos reais com imaginação pura da autora. É verdade que os bairros Ganchinho, Sítio Cercado e Bairro Novo foram formados por ocupações, e que uma destas saiu do Xaxim, e que os ocupantes tiveram que pagar aluguel aos donos da terra, por intermédio da COHAB. E em algumas ocupações houve sorteio para realocar as pessoas. Existe a Igreja de Nossa Senhora dos Imigrantes, pelo motivo já apontado, mas a "ocupação Professora Izabel Prima de Oliveira" não existe, este é apenas o nome de uma rua do bairro Ganchinho. Esta crônica é uma brincadeira, um treinamento para o trabalho de conclusão de curso da autora.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Peço perdão aos cineastas

Nestes últimos dias, tenho sofrido com duas pragas que podem andar juntas: sapatos que machucam e atrasos. Para o meu trabalho de conclusão de curso, tenho percorrido Curitiba entrevistando cineastas, entre outras pessoas, o que está sendo um grande privilégio. Contudo, não tenho ido de tênis, que seria o recomendável para longas caminhadas, porque está calor. Gosto quando faz esse tempo, mas esta é, também, provavelmente a época em que mais sofro com sapatos.

Para começar, durante a maior parte do ano acabo usando tênis, que é uma invenção maravilhosa para quem gosta de ou precisa caminhar tanto, e acabo me desacostumando com sandálias e chinelos de dedo - preciso dar um tempo para que o vão entre os dedos não saia machucado com a hastezinha que separa o dedão dos outros dedos, por exemplo. Mas o problema não é só esse, claro, seria bom demais se fosse. Um sapato raspa no meu calcanhar, outro faz ferida na região do osso, outro oprime os dedos, o dorso do pé ou o calcanhar, e por aí vai. Às vezes, um pé está muito bem num sapato, mas o outro não, porque tenho alguns milímetros a mais em um deles (não lembro qual), o que é normal, conforme atesta a minha mãe, que é formada em Podologia. E, o problema dos problemas, tenho a maior ojeriza a sapatos de salto, embora socialmente se exija das mulheres pelo menos a adaptação a saltos anabela (que também me doem, ao menos nos primeiros dias de uso).

Lembro que, numa determinada época da minha vida, mais impaciente com essas dores, chegava a levar um sapato alternativo na mochila, para quando elas começassem. Estando eu uma vez com meu pai num ponto de ônibus, ele me viu trocando um calçado pelo outro e começou a rir: "Mulher é um bicho complicado, mesmo". A minha resposta: "Eu apenas estou escolhendo a dor que vou sentir". Porque um daqueles me apertava os dedos, e o outro me apertava, se não me engano, o calcanhar. Não lembro qual deles eu troquei.

Por tudo isso, não faz sentido para mim aquelas histórias, que volta e meia aparecem na mídia, de mulheres que colecionam sapatos e são loucas por sapatos de salto. Eu não me vejo assim, falando como mulher. Reconheço que são bonitos, até paro para olhar em vitrines, mas desanimo ao constatar que a maioria dos mais elegantes é de salto alto, e ainda por cima agulha! É um custo encontrar sandálias baixas. Todos pensam e agem como se todas as mulheres usassem saltos o tempo todo, quando eu mesma conheço várias que não gostam. Por que não mostrá-las ao lado das doentes por salto alto? Seria uma outra imagem da mulher na mídia. E será que não existem mulheres que não prefeririam encomendar sapatos a um sapateiro, que faria sob medida para elas? Eu sou uma dessas.

Para completar, muitas vezes ando demais porque me perco por esta cidade, apesar de morar aqui desde que nasci, e às vezes isso acontece mesmo indo para um lugar em que eu ia bastante antes e depois parei de ir. Parece que a minha memória deleta a maneira de chegar lá, e aí só batendo pernas para achar, porque, também ao contrário da maioria das mulheres, não gosto de pedir informações. Me guio por pontos de referência, nomes de ruas e os mapas dos pontos de ônibus. Mas, com tudo isso, não tenho primado pela pontualidade. Por isso, peço perdão aos cineastas, publicamente. Não quero atrapalhar o trabalho de vocês.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Androginia

Ao pegar um ônibus, a princípio nem olhei para a cara do cobrador. Apenas passei, sentei na segunda fileira de bancos próxima a ele, peguei meu indefectível livro e comecei a ler. No entanto, acabei passando quase toda a viagem olhando para o cobrador.


Não sei por que, nem em que momento, mas, ao erguer os olhos, distraidamente, logo me peguei admirando dois detalhes dele: a orelha esquerda, que era a que eu podia observar livremente, estava cheia de argolas no lóbulo inferior, série esta que era encerrada pelo que parecia ser um piercing, e o cabelo curtinho, só não digo cortado à escovinha porque os fios do topo estavam inteiros, e até arrepiados, pintados de amarelo (os fios mais próximos da cabeça e do pescoço eram escuros). Me chamou a atenção o fato de que de repente me dei conta de que, por estes dois detalhes, eu não tinha como saber se quem estava à minha frente era homem ou mulher!


De início, raciocinei que é até engraçado que tudo isso, hoje, possa representar também um homem. Mas, com o tempo, essa impossibilidade de definição começou a me afligir. O perfil, que eu esquadrinhava furiosa mas disfarçadamente em busca de qualquer sinal distintivo mínimo, não dizia nada, e esta era a única parte do cobrador à qual eu tinha acesso! Cada vez mais intrigada, pensei que a única maneira seria conferindo se aquela pessoa tinha seios. Mas levantar assim, do nada, sem a intenção de descer ou ceder o lugar, é muito estranho num ônibus. Sem contar que mesmo isso, hoje, pode não querer dizer muita coisa. Está cada vez mais difícil encontrar sinais para se definir quem é homem e quem é mulher! Cheguei a lembrar de um filósofo muito estudado em Comunicação, Stuart Hall, que, na minha opinião, foi quem melhor escreveu sobre essa perda de referências para se definir de forma segura a identidade de alguém, e, portanto, essa confusão entre referências e identidades num mesmo indivíduo, que às vezes podem ser até antagônicas.


Por exemplo, até mais ou menos a década de 1920, as mulheres tinham que manter os cabelos compridos, no máximo presos em coques e outros penteados. De repente, virou moda cortá-los, ou seja, elas, como os homens, também passaram a usá-los curtos. E ainda houve, ao longo do século passado, as que rasparam a cabeça, corajosamente, pelas mais diversas razões, ou seja, adotaram mais uma prerrogativa masculina. Há, digamos, apenas uma década, piercing era coisa de bandido, ou no mínimo de jovem irresponsável, e brincos - ou argolas na orelha - eram coisas exclusivamente de mulher. Hoje, a maioria dos adolescentes usa piercing, e muitos meninos, e mesmo homens mais maduros, se enfeitam com brincos, sem grandes problemas. Nada contra, acho importante essa modificação de visões, especialmente com relação ao piercing e à tatuagem. Mas não há como negar também que isso complicou a definição das identidades. O que altera a nossa forma de relacionamento com os outros, pois alguém se atreveria a perguntar àquela pessoa que eu estava observando se ela era homem ou mulher?


Minha esperança, então, com relação ao cobrador, foi esperar que ele se virasse na minha direção espontaneamente, mas já não era mais para ver se tinha seios. Examinando um pouco melhor o rosto, comecei a achar-lhe uma delicadeza que provavelmente não encontraria no rosto de um homem. Está bem, mesmo isso hoje pode se alterado, e ainda por cima algumas vezes a natureza pode dar traços mais delicados a um homem e mais viris a uma mulher, mas que diabo, a gente tem que se agarrar a alguma coisa! De repente, as sobrancelhas (ou a sobrancelha, pois continuava só podendo ver bem a esquerda) me chamaram a atenção. De início, me pareceram um pouco grossas, mas estavam feitas, isto é, cada uma era uma linha sem nenhuma ponta espetada. Mas demorei muito para chegar a uma conclusão, confesso. O que me valeu foi que de repente ela virou para uma passageira e falou - a voz era baixa, feminina. Logo depois a passageira ao lado desta, que estava à minha frente, se levantou, e foi então que pude ver o tênis da cobradora: bege claro com desenhos em belos traços grossos pretos representando, pelo que pude perceber, um beija-flor bicando uma flor. (Se bem que, na hora, acabei estabelecendo como única referência realmente segura para se determinar o gênero de alguém, hoje, a presença ou não do pomo-de-adão. Mas isso foi até descobrir que já existe como raspar esse apêndice, e me lembrar de que provavelmente a ingestão de hormônios masculinos pode criá-lo em quem não tem.)


No resto da viagem, a cobradora virou o rosto na minha direção mais umas três ou quatro vezes. Os olhos eram puxados de tal maneira, que pareciam desenhados com delineador, e acho que ela usava batom. A outra orelha não tinha nenhum adorno. Não obstante, havia masculinidade nos cantos da boca derrubados e numa certa frieza contida naqueles olhos azul-escuro. Provavelmente, a tentação de dizer que precisamos mudar nossos conceitos sobre identidades, agora que as referências foram ou estão sendo alteradas, é grande. Até pode ser. Mas tenho que voltar à pergunta que já fiz no texto: se é só perguntando que a gente consegue a resposta mais correta, quem se atreveria a sair perguntando o gênero de quem não conhece?

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Flânerie

Uma das recompensas de sair a caminhar a qualquer momento sem compromisso é poder se sentir dono da cidade onde já nasceu ou mora. Afinal, ser dono de uma propriedade não é poder entrar nela quando quiser, sem ter que pedir permissão para ninguém? Pois a cidade também está aí para isso! Aliás, olhem este belo trecho de Walter Benjamin, que teorizou sobre isso:

"A rua se torna moradia para o flâneur que, entre as fachadas dos prédios, sente-se em casa tanto quanto o burguês entre suas quatro paredes. Para ele, os letreiros esmaltados e brilhantes das firmas são um adorno de parede tão bom ou melhor que a pintura a óleo no salão do burguês; muros são a escrivaninha onde apóia o bloco de apontamentos; bancas de jornais são suas bibliotecas, e os terraços dos cafés, as sacadas de onde, após o trabalho, observa o ambiente". Isto não parece poesia?

Essa flânerie aí, mencionada no título, é o ato de simplesmente caminhar pela cidade, aparentemente sem fazer nada de útil, sem produzir. Mas só aparentemente. Porque quem faz isso, na verdade, é para observar. As pessoas e a arquitetura.

Este termo surgiu na França do século XIX, e serve para designar o ato em si, que envolve o flanar, o passeio, o movimento, e o voyeurismo, ou seja, a observação (o termo voyeurismo é muito mais amplo do que sugere o seu significado mais conhecido). O homem que pratica isso é chamado de flâneur; seu correspondente feminino é a flâneuse.

O flâneur, de acordo com a poesia francesa do século XIX e com o estudo de teóricos como Walter Benjamin, se tornou um personagem freqüente na paisagem urbana dessa época - o mais interessante, aqui, é que uma das razões para isso é que essa atitude era fundamental para quem precisava ou queria se manter informado sobre os acontecimentos do dia, porque muitos desses flâneurs eram escritores e jornalistas. Isto não diz algo, numa época de shoppings centers, entretenimentos virtuais, falta de segurança e de tempo?

É bastante válido fazer esse exercício, principalmente quem quer ser escritor ou jornalista. No entanto, eu mesma demorei anos para descobrir como se faz isso de modo a não parecer uma atividade sem sentido (o que significa que perdia a concentração). Mesmo lendo atualmente livros sobre a flânerie, pois estou pesquisando isso para o meu trabalho de conclusão de curso, é claro que em nenhum deles vai aparecer o "modo de fazer". Descobri por mim mesma que o segredo é se deixar seduzir por qualquer coisa - seja um ambiente, seja uma pessoa - e observar. Observar disfarçadamente, desviando o olhar para que ninguém perceba, mas de modo a anotar todos os detalhes possíveis (mentalmente ou já escrevendo). Anotar é muito importante. Mas a sensação não precisa ser só visual. Ouvir conversas alheias, como se não estivesse presente, também pode ser uma boa fonte de inspiração, ou mesmo de informação.

Meu plano é colecionar cenas e frases. Como sábado passado, quando me pus a observar, no meio da multidão que já cercava o palco para o show-missa em homenagem a Nossa Senhora da Luz, no Largo da Ordem, um homem vestido de azul que andava tropegamente, rindo estranhamente às vezes. Por instinto, pensei que poderia ser alguém com deficiência mental, mas também poderia se tratar apenas de um bêbado - não sei, não me aproximei o bastante para verificar se cheirava a cachaça. Justamente por esses atributos é que ele destoava da multidão, então o acompanhei com o olhar durante um curto tempo, até ele sumir na Galeria Júlio Moreira. Talvez a única coisa mais significativa que ele tenha feito (que me lembre) foi jogar fora um cigarro. Mas me lembro dele até hoje, porque a sua atitude tinha algo de grotesco.

Porém, creio que a minha melhor história de flânerie continua sendo a cena que compartilhei com um amigo, sentados os dois em plena Praça Rui Barbosa: um casal se beijando apaixonadamente no banco em frente ao nosso, por não sei quanto tempo (no mínimo, vários minutos). Era um beijo de tirar o fôlego, e para eles o mundo em volta não existia. O curioso é que, pela saia comprida da menina, suspeitamos que pelo menos ela pudesse ser evangélica. E faltam mais dois elementos para completar este quadro: a pasta do cursinho Dom Bosco, se bem me lembro dela também. E um pacote de presente abandonado no banco, perigando, conforme disse o meu amigo, "passar um molequinho e roubar". Eles pararam num intervalo curto, e voltaram ao beijo. Não lembro se, quando nós dois saímos dali, eles continuavam.

Vale a pena!


Sugestões de livros sobre o assunto:

- As flores do mal, Charles Baudelaire;

- Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo, Walter Benjamin (foi de onde tirei o trecho acima);

- A invenção do cotidiano, Michel de Certeau;

- O cinema e a invenção da vida moderna, Leo Charney e Vanessa R. Schwartz;

- A poética do espaço, Gaston Bachelard (apesar de tratar sobre os mais diversos tipos de "casa" e de "abrigo", vale a pena ser indicado aqui, porque mostra como podemos ser flâneurs também dentro de casa e na natureza - a flânerie surgiu como uma arte essencialmente urbana).

- Dois flâneurs brasileiros: João do Rio e Lima Barreto.


Errata: Na postagem anterior, disse que no atentado de 11 de Setembro, nas Torres Gêmeas, morreram aproximadamente 3 mil pessoas, e mais 184 do Pentágono. 3 mil, ao que parece, foi o saldo total, somando o World Trade Center, o Pentágono (125 mortos, conforme Eugênio Bucci) e o avião que não chegou a atingir a Casa Branca (246 mortos, mesma fonte). Aliás, por que, ao falar nestes atentados, só se menciona as Torres Gêmeas?